quarta-feira, 1 de julho de 2015

Redução da Maioridade Penal: Retrocesso ou Avanço Civilizatório?

Dada a referida imaturidade dos adolescentes, os profissionais da saúde mental sejam chamados a compor o novo sistema mediante avaliações técnicas
A redução da maioridade penal no Brasil tem sido debatida em um clima predominantemente emocional. O tema, no entanto, exige uma reflexão atenta sobre os vários aspectos envolvidos e uma abordagem multidisciplinar, a fim de minimizar as distorções geradas por idéias pré-concebidas.
Uma dessas distorções é o recurso abusivo ao Sistema Penal para “solucionar”, de forma emergencial, questões complexas que demandam investimento político e alto custo social. O recrudescimento das leis penais e a consequente elevação dos índices de encarceramento trazem a sensação imediata de que o Estado está cumprindo seu papel na segurança pública. Na verdade, a prisão apenas oculta o problema, gerando a falsa noção de que o mesmo deixou de existir. Esse comportamento assemelha-se ao da criança cuja percepção de realidade se restringe ao seu campo visual: “só existe o que eu vejo”.
A questão apresenta ainda outros desdobramentos. A moderna criminologia não se cansa de denunciar que o ambiente carcerário gera processos de criminalização superpostos. Já se observou, desde o final do século XIX, que esse sistema vem fomentando o que Foucault designou como meio delinquencial fechado: os longos períodos de reclusão fazem com que o crime se organize e se profissionalize no meio urbano, aumentando os índices de reincidência (FOUCUALT, 1996). Sem mencionar os estigmas que recaem sobre a população encarcerada e também sobre os egressos do sistema prisional, elevando sua vulnerabilidade frente a novos processos de criminalização. 
Essas e outras questões não têm sido enfrentadas pelo debate popular como deveriam. Em uma sociedade como a nossa – marcada por uma estrutura central-periférica extrema e pela carência de acesso a bens essenciais, particularmente, a uma educação de qualidade – a opinião pública é facilmente capturada por influências e manobras político-eleitorais. Temas como a “impunidade”, a “morosidade da Justiça”, o “aumento da criminalidade juvenil”, entre outros, transformam-se em jargões facilmente assimiláveis, ainda que em grave prejuízo à verdade. Apenas para citar um exemplo, o que pode haver de verdadeiro sobre o argumento da impunidade em um país com mais de meio milhão de pessoas adultas encarceradas? Essas veiculações criam um clima de alarme social, precipitando soluções extremas e sem o amadurecimento necessário. 
Na direção oposta das conquistas históricas pelo reconhecimento dos direitos humanos de todo cidadão e de um estatuto próprio aos adolescentes, o parlamento brasileiro cede lugar a pressões imediatistas, precipitando o projeto da redução da responsabilidade penal para 16 anos de idade. Medida que já se revelou inócua em outros países e que, de toda forma, atenta contra o Estado Democrático de Direito por lançar mão da força cogente do sistema penal para oferecer resposta a problemas, inequivocamente, de ordem social.
Não se quer banalizar os direitos das vítimas ou justificar as infrações, por vezes hediondas, praticadas por muitos adolescentes. O processo civilizatório se faz pelo estabelecimento de regras e pelo respeito a elas. Todo processo de socialização e educação requer a internalização desses limites e noções muito claras sobre as consequências do seu descumprimento. Em verdade, não há como mensurar a aflição das pessoas que sofreram violências, dos seus familiares e amigos frente à brutalidade e até letalidade, desses atos infracionais. Privados do convívio com entes queridos ou vendo-os suportarem perdas ou prejuízos morais de alta gravidade, resta a revolta. É compreensível que compartilhem sentimentos de “vingança privada” ou mesmo institucionalizada, diante do trauma indelével e também da sensação de desamparo pelas instâncias de “justiça”.
A pauta, todavia, revela uma questão de fundo: a vida e o futuro que se pretende oferecer a esses adolescentes. Se, por um lado, o sentimento de revolta é compreensível no espaço privado, por outro, não autoriza que adquira legitimidade no âmbito público. A redução da responsabilidade penal é um discurso que não pode ser incorporado por instituições que, por dever moral e constitucional, devem garantir proteção aos jovens. Qualquer projeto político-criminal que desconsidere o fato de que os adolescentes não gozam de pleno desenvolvimento neurofisiológico e de plena capacidade psicoemocional, torna-se um discurso de mera vingança.
De acordo com o jurista italiano Luigi Ferrajoli, a história das penas é mais infamante para a humanidade do que a própria história do delito: “enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um” (FERRAJOLI, 2002, p. 355).
Na Antiguidade, o princípio do talião, oriundo do Código de Hamurábi (1.780 AC), pôs limites à “lei do mais forte”, estabelecendo um critério de proporcionalidade entre o dano e o castigo. O enunciado olho por olho, dente por dente era a citação emblemática dessa busca inicial por justiça.
Com o tempo, passou-se a questionar esse critério de proporção. Não era possível chegar à noção exata de proporcionalidade sem avaliar os contextos e as limitações dos delitos e dos castigos. Não era possível promover justiça, por meio da imposição de sofrimentos físicos e morais, sem considerar a desproporcionalidade que variava entre a sensibilidade e a capacidade de reparação dos apenados e a sanha dos carrascos ao imputar-lhes a pena.
Na modernidade, e sob os eflúvios iluministas, Beccaria, Carrara e outros juristas deram ao conceito de proporcionalidade entre crime e castigo um tratamento humanista, abandonando a ideia de retribuição como vingança privada e como violência. As penas, aos poucos, deixaram de recair sobre o corpo do delinquente, para alcançarem somente a sua liberdade individual. Era o alvorecer da pena de prisão e o abandono progressivo dos suplícios públicos, torturas, decapitações, etc. 
Mas, o que inicialmente representou um avanço histórico em relação às práticas do Antigo Regime, tornou-se uma maneira mais “sutil e racionalizada” de alcançar corpo e mente dos apenados. Hoje, o sistema penal impõe pena de prisão a uma grande parcela de delitos e delinquentes, promovendo os efeitos da prisionalização. No campo penal, reproduzem os efeitos de qualquer processo de institucionalização: perda de autonomia, de reflexão crítica, alienação, estigmatização, efeitos que se tornam ainda muito mais nefastos e, talvez irreversíveis, aos adolescentes em processo de formação. Efeitos, entre outros tantos, característicos das “instituições totais”. (GOFFMAN, 1996, p. 16)
Em relação a esses jovens, como afirmar um critério justo de proporcionalidade penal, se vivemos todos imersos em uma cultura de violência repercutida e retroalimentada pelos meios de comunicação?  Compactuamos com rentáveis mercados de videogames, filmes, músicas, enfim, com todos os veículos midiáticos que fomentam e “naturalizam” esses padrões de convivência social sem oferecer a crítica necessária.
Observamos que o mercado de bebidas alcoólicas, droga lícita, captura uma parcela cada vez maior de consumidores adolescentes. Muito embora a legislação vigente coíba essa prática, a fiscalização não é suficiente. Acessam com facilidade shows e festas voltadas para o público adulto e, mesmo em eventos predominantemente juvenis, onde verificamos certa banalização desse consumo, não raro com a anuência e a conivência dos próprios responsáveis. Ao final da “folia”, muitas vezes são vistos perambulando alcoolizados, agressivos, fragilizados e vulneráveis a todo tipo de ocorrência, inclusive à exposição precoce ao mercado das drogas ilícitas.
Há uma incoerência no discurso que reclama a redução da maioridade penal, ao tempo em que promove, ou ao menos tolera, a divulgação e o patrocínio da cultura da violência e do consumo de drogas de forma indiscriminada. Um verdadeiro paradoxo, quando se sabe que os maiores responsáveis por sua vulnerabilidade frente à ação seletiva do sistema penal são os próprios adultos, de forma direta ou difusa na sociedade.
  Que justificativa seria suficiente para mudar a legislação atual em prejuízo do adolescente quando se sabe que são os adultos que falham na promoção, no cumprimento e na fiscalização do que está preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Seria justo ou razoável apenar esses jovens com o mesmo sistema falho e precário que se impõe aos adultos? O Brasil ocupa o nada ufanista terceiro lugar mundial em população carcerária – depois da China e dos Estados Unidos – e suas instalações penitenciárias padecem de inadequação e subdimensionamento.  Que argumento seria capaz de legitimar a substituição do atual sistema socioeducativo por uma política de encarceramento massificado que, inclusive, não encontra abrigo nas recomendações e pactos internacionais?
   Afinal, o que é justo? A resposta continua a ser um desafio principalmente para os campos do direito, da sociologia e da saúde mental. Com aportes da neurologia, da pedagogia, da psicologia e da psiquiatria, o campo das chamadas neurociências revela que a maturação do sistema nervoso central (SNC) nos seres humanos só se consuma no início da vida adulta, por volta dos 21 anos de idade. Até essa fase, as funções mentais mais sofisticadas – que envolvem o desenvolvimento dos processos de raciocínio e de aprendizado, localizadas na córtex pré-frontal do SNC – estão incompletas.
Isso posto, temos que do ponto de vista psicoemocional, é justamente a noção de consequência que marca a divisão entre a vida adulta e a infanto-juvenil; a capacidade de ponderar entre custos e benefícios e de avaliar os desdobramentos de ações e omissões. Para aqueles que ainda não possuem o desenvolvimento mental completo, torna-se mais difícil fazer essa ponderação. Em geral, costumam perceber os eventos como situações concretas que começam e terminam no mesmo instante, sem projetarem seus efeitos no tempo e no espaço.
Seria justo, então, falar em imputabilidade penal sem considerar os determinantes biopsicosociais e culturais intervenientes na conduta antissocial dos adolescentes e, até mesmo, dos maiores de 18 e menores de 21 anos? Qual o nível de responsabilização que pode recair sobre pessoas cuja maturação psíquica está incompleta? Que parcela dessa responsabilidade difusa a sociedade deve tomar para si, perante a realidade de uma cultura consumista-hedonista, que exalta o ego e cultua a imagem; que desconstrói o princípio da autoridade; que libera e incentiva a satisfação da própria vontade em detrimento dos demais; que nega os freios civilizatórios e alimenta a ilusão da inexistência de sequelas?
É possível pensar também que, dada a referida imaturidade dos adolescentes, os profissionais da saúde mental sejam chamados a compor o novo sistema mediante avaliações técnicas. Com isso, ainda que indiretamente, passariam a compor uma parte do próprio sistema penal. Passariam a avalizar e legitimar esse recrudescimento que, por princípio e definição, colide com o conhecimento acumulado em seu campo próprio de conhecimento. 
Por fim, é preciso adensar a discussão sobre os desdobramentos práticos e orçamentários dessa possível redução da maioridade penal. Seria necessário que o Poder Público oferecesse as condições para o cumprimento dos seus próprios comandos restritivos. Seria preciso a criação de novos presídios e de toda a estrutura de segurança, alimentação, saúde e trabalho que demandam, assim como a criação de novos quadros funcionais de agentes penitenciários. Que percentual do PIB nacional seria destinado ao novo sistema e quanto seria necessário aportar de outras dotações já combalidas como a educação, a assistência social, a saúde, a segurança entre tantas outras? Quais seriam os desdobramentos na arrecadação de impostos? Além disso, é possível ainda pensar na instalação de um verdadeiro parque prisional aberto à terceirização e tudo que isso representa ao Brasil.
A discussão política e social tem enfrentado essas e outras questões?
Augusto Cesar de Farias Costa, médico-psiquiatra, psicoterapeuta, vice-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural

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