sábado, 7 de janeiro de 2012

A dama que palita os dentes

Quando eu menos esperava, alguém disse ao meu lado: “Por que você não escreve sobre a morte?”.
(…)

Pois, como escrevi e disse várias vezes, somos uma sociedade agitada, mas sem muita alegria.

Muita gritaria, pouca comunicação. Muita exibição de sensualidade, tantas vezes artificial e forçada, mas pouco amor. Muito palavrório, pouca realização.

Muitas receitas sobre como educar os filhos, por exemplo, e a meninada tantas vezes sem compustura ( e nós?, e nós?), cheia de exigências, quando deveria era reclamar por estudo melhor, mais rigoroso, mais exigente, melhores professores, mais bem pagos e mais exigidos também. Mas queremos tudo simples e simplificado, queremos logo um bom emprego, de preferência de chefe, claro, quem quer ter de subir no emprego, quem quer ter de subir na vida?

A gente quer estar logo no topo, ganhando bem, e nada de supervisor espiando por cima do ombro para ver se estamos trabalhando no computador ou entrando no face, no twitter, na pornô.

A gente não quer saber de nada sério, morte é coisa de velho,porém, como dizia a Clarice, a Lispector, ” um dia, tinha se passado vinte anos.”

Um dia terão se passado quarenta anos, cinquenta, e a gente não vai nem saber que viveu, porque viveu, como continua vivendo.

” Desperdício” é uma das palavras que mais detesto na nossa língua e na nossa realidade. Desperdício de comida e dinheiro, de esforço, e de vida.

Desperdício dos afetos, quando enganamos ou traímos. Quando somos irresponsáveis feito adolescentes eternos, e não acho graça nenhuma nisso. Atitudes de criança e de adolescente são toleráveis ou até graciosas na idade devida. Depois ficam chatas, depois ficam inconvenientes, ficam burras.

Quando penso na morte, não é só como a sombra da separação, mas como esse enigma que nos espia no fundo de um espelho onde, se sorrimos, nosso reflexo pode não sorrir - e aí o que a gente faz? Aí a gente se arrepende das besteiras, das bobagens, não daquelas naturais, normais - porque não somos perfeitos, que os deuses nos livrem das pessoas exemplares - mas da grande bobagem de ter vivido sem perceber, sem curtir.

Não a curtição da bebida, da droga, da promiscuidade, mas da coisa profunda e gostosa dos bons afetos, da maravilhosa natureza. Dos trabalhos humanos que nos fizeram chegar das cavernas dos trogloditas até a mais apurada tecnologia que nos permite ver e ouvir pessoas amadas a milhares de quilômetros de distância, conhecer culturas, entender gentes, apreciar a arte, percorrer a natureza a mais remota, sem sair da mesa do computador.

O olhar da velha dama à espreita com seus olhos de gato, palitando os dentes como se não tivesse pressa, pode nos levar a mudar um pouco o mundo, sendo interessados, descentes, compassivos, leais. Isto é o que, talvez, a ideia eventual do efêmero de tudo pode nos trazer, sem drama: a consciência do nosso valor, da nossa capacidade, da nossa importância.


Lya Luft
(Veja, edição 2244 - 23/11/2011 - página 28).

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