Dizem que “o que os olhos não vêm o coração não sente”. A regra atribuída aos amantes, de certo, não se aplica ao paladar nem ao olfato que quase sempre nos enche de saudades sem nenhuma ajudazinha dos olhos. Isso mesmo, uma das formas mais autênticas de se sentir saudade é se notar a falta de alguns sabores. Se os olhos traem o coração, a língua não!
A degustação nos é agradável até por pensamento. Quem já não encheu a boca de água só em pensar naquela delícia que mais nos apetece. O ato de comer, de uma boa garfada, de saborear um bom prato ainda é um dos nossos grandes prazeres e de grandes significados.
Outro dia li num noticioso que se pode definir uma época ou o padrão de uma sociedade com base apenas na culinária servida àquele povo.
A mesma fonte informava ainda que restos de alimentos encontrados “fossilizados” são suficientes até para determinação daquela civilização, seus aspectos culturais, gastronômicos e religiosos.
Mas o que eu quero dizer mesmo é que ultimamente, ou melhor, há alguns anos, embora os olhos não vejam o paladar, venho sentindo saudades de alguns sabores próprios à minha infância. Hábitos interioranos, herdados de nossos pais e avós, a exemplo da família reunida na mesa de jantar e até a geografia da disposição dos pratos sobre a mesa. Tudo em sua ordem, inclusive os talheres. As refeições ganhavam um “ar” quase que sagrado, uma áurea de respeito e agradecimento a Deus pelo alimento posto à mesa, dominava aquela cena.
Não só os alimentos se alinhavam à mesa, as pessoas também. O patriarca sentava-se à cabeceira do móvel e num sentido horário seguia-se D. Mariinha, e os três filhos, além da nossa ajudante de cozinha que, por pura adoção afetiva, compunha a nossa família.
O almoço era servido cedo. O apito da Brasil Oiticica era quem ditava o início da refeição: 11 horas em ponto. Lembro ainda que o grito da Oitica também servia para ajustarmos os relógios. Era mais confiável e pontual que o horário anunciado pela rádio globo no motorádio portátil que tínhamos.
A variedade dos pratos era de encher a boca: “arroz solto” e arroz de leite com pedacinhos de queijo coalho, feijão em caroço temperado com coentro, manteiga de garrafa e carne de charque (há época havia a suspeita de que se tratava de carne de jegue), macarrão tipo espaguete (pilar) feito ao molho de tomate (o molho era feito em casa, esmagando o tomante comprado na feira), vez por outra tinha “mala-assada” atualmente conhecida como omelete, o ovo era de galinha capoeira. Às vezes, servia-se também mungunzá salgado com mocotó de boi e farofa molhada ou com manteiga da terra, acompanhada de umas folhas de alface e batata-doce. Havia ainda o ki-suco de groselha como refresco e o arroz de festa (cozido no caldo da galinha).
Em dias de festas ou aos domingos então era a vez dela: a inigualável e indefectível galinha à cabidela e seus acompanhamentos. Até hoje lembro a receita que me fazia brilhar os olhos, e o estômago, claro:1 galinha de capoeira grande e gorda, 2 colheres de sopa de vinagre, 4 limões, sal, pimenta do reino e cheiro verde a gosto, 2 dentes de alho socados, 1 cebola ralada, 2 colheres de sopa de óleo ½ pimentão cortado em tiras finas, 4 tomates picados sem pele e sem sementes, porção de sangue da galinha e 2 folhas de louro. Era isso que compunha aquela provocação ao pecado da gula.
À tarde, lá pelas 15h30min, novamente estávamos à mesa. Era a hora do lanche. Nada de iogurtes, hambúrgueres, pizzas, todinhos, refrigerantes nem salgadinhos. Um bule de café e um amontoado de tapiocas com manteiga nos aguardavam esparramadas feito guardanapos enrolados um por cima dos outros em um dos pratos, no outro, bolinhos de caco (também chamados de orelha-de-pau). Do outro lado, meia-dúzia de pão aguado com creme de leite batido. Uma iguaria onde só no sertão se tem notícia.
Esse era o lanche, digamos, oficial, porque o oficioso era o que a gente comia na rua: do cardápio se via rosário de coco-catolé, alfininho, consolo de açúcar, broa preta, cocorote, pirulito enrolado em papel de seda vendido na tradicional “tábua de pirulito”, quebra-queixo (que podíamos trocar por garrafas, meia-garrafa e litro vazios), din din e refresco em garrafinhas de vidro não descartáveis.
Hoje o que se percebe é que aqueles pratos tradicionais das famílias nordestinas têm se distanciado da predileção dessa nova geração. A galinha a cabidela deu lugar ao galeto “bombado” de hormônios, o pão com creme foi trocado pelo rodízio de pizza e o ki-suco não resistiu às investidas da Coca-Cola.
O tempo e a propaganda consumista cuidaram de modificar a nossa mesa e hoje os sabores são outros, muito menos saudáveis, obviamente.
A galinha à cabidela com certeza é estranha ao paladar dessa juventude, logo a galinha à cabidela que, historicamente, era tida como alimento nobre, comida de alguns brancos privilegiados, importada pelos portugueses embora as suas origens mais remotas nos conduzam à cozinha francesa, do poulet en barbouille, nas batalhas entre César e os gauleses.
A degustação nos é agradável até por pensamento. Quem já não encheu a boca de água só em pensar naquela delícia que mais nos apetece. O ato de comer, de uma boa garfada, de saborear um bom prato ainda é um dos nossos grandes prazeres e de grandes significados.
Outro dia li num noticioso que se pode definir uma época ou o padrão de uma sociedade com base apenas na culinária servida àquele povo.
A mesma fonte informava ainda que restos de alimentos encontrados “fossilizados” são suficientes até para determinação daquela civilização, seus aspectos culturais, gastronômicos e religiosos.
Mas o que eu quero dizer mesmo é que ultimamente, ou melhor, há alguns anos, embora os olhos não vejam o paladar, venho sentindo saudades de alguns sabores próprios à minha infância. Hábitos interioranos, herdados de nossos pais e avós, a exemplo da família reunida na mesa de jantar e até a geografia da disposição dos pratos sobre a mesa. Tudo em sua ordem, inclusive os talheres. As refeições ganhavam um “ar” quase que sagrado, uma áurea de respeito e agradecimento a Deus pelo alimento posto à mesa, dominava aquela cena.
Não só os alimentos se alinhavam à mesa, as pessoas também. O patriarca sentava-se à cabeceira do móvel e num sentido horário seguia-se D. Mariinha, e os três filhos, além da nossa ajudante de cozinha que, por pura adoção afetiva, compunha a nossa família.
O almoço era servido cedo. O apito da Brasil Oiticica era quem ditava o início da refeição: 11 horas em ponto. Lembro ainda que o grito da Oitica também servia para ajustarmos os relógios. Era mais confiável e pontual que o horário anunciado pela rádio globo no motorádio portátil que tínhamos.
A variedade dos pratos era de encher a boca: “arroz solto” e arroz de leite com pedacinhos de queijo coalho, feijão em caroço temperado com coentro, manteiga de garrafa e carne de charque (há época havia a suspeita de que se tratava de carne de jegue), macarrão tipo espaguete (pilar) feito ao molho de tomate (o molho era feito em casa, esmagando o tomante comprado na feira), vez por outra tinha “mala-assada” atualmente conhecida como omelete, o ovo era de galinha capoeira. Às vezes, servia-se também mungunzá salgado com mocotó de boi e farofa molhada ou com manteiga da terra, acompanhada de umas folhas de alface e batata-doce. Havia ainda o ki-suco de groselha como refresco e o arroz de festa (cozido no caldo da galinha).
Em dias de festas ou aos domingos então era a vez dela: a inigualável e indefectível galinha à cabidela e seus acompanhamentos. Até hoje lembro a receita que me fazia brilhar os olhos, e o estômago, claro:1 galinha de capoeira grande e gorda, 2 colheres de sopa de vinagre, 4 limões, sal, pimenta do reino e cheiro verde a gosto, 2 dentes de alho socados, 1 cebola ralada, 2 colheres de sopa de óleo ½ pimentão cortado em tiras finas, 4 tomates picados sem pele e sem sementes, porção de sangue da galinha e 2 folhas de louro. Era isso que compunha aquela provocação ao pecado da gula.
À tarde, lá pelas 15h30min, novamente estávamos à mesa. Era a hora do lanche. Nada de iogurtes, hambúrgueres, pizzas, todinhos, refrigerantes nem salgadinhos. Um bule de café e um amontoado de tapiocas com manteiga nos aguardavam esparramadas feito guardanapos enrolados um por cima dos outros em um dos pratos, no outro, bolinhos de caco (também chamados de orelha-de-pau). Do outro lado, meia-dúzia de pão aguado com creme de leite batido. Uma iguaria onde só no sertão se tem notícia.
Esse era o lanche, digamos, oficial, porque o oficioso era o que a gente comia na rua: do cardápio se via rosário de coco-catolé, alfininho, consolo de açúcar, broa preta, cocorote, pirulito enrolado em papel de seda vendido na tradicional “tábua de pirulito”, quebra-queixo (que podíamos trocar por garrafas, meia-garrafa e litro vazios), din din e refresco em garrafinhas de vidro não descartáveis.
Hoje o que se percebe é que aqueles pratos tradicionais das famílias nordestinas têm se distanciado da predileção dessa nova geração. A galinha a cabidela deu lugar ao galeto “bombado” de hormônios, o pão com creme foi trocado pelo rodízio de pizza e o ki-suco não resistiu às investidas da Coca-Cola.
O tempo e a propaganda consumista cuidaram de modificar a nossa mesa e hoje os sabores são outros, muito menos saudáveis, obviamente.
A galinha à cabidela com certeza é estranha ao paladar dessa juventude, logo a galinha à cabidela que, historicamente, era tida como alimento nobre, comida de alguns brancos privilegiados, importada pelos portugueses embora as suas origens mais remotas nos conduzam à cozinha francesa, do poulet en barbouille, nas batalhas entre César e os gauleses.