terça-feira, 30 de novembro de 2021
Álvaro de Campos
Apontamento
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
( Fonte: Jornal da poesia )
segunda-feira, 29 de novembro de 2021
domingo, 28 de novembro de 2021
"Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
sábado, 27 de novembro de 2021
A grande seca de 1877
"A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos."
Hermann Hesse - in 'Demian'
A oração
Hoje vou escrever sobre a arte de rezar. Dirão que esse não é tópico que devesse ser tratado por um terapeuta. Rezas e orações são coisas de padres, pastores e gurus religiosos, a serem ensinadas em igrejas, mosteiros e terreiros. Acontece que eu sei que o que as pessoas desejam, ao procurar a terapia, é reaprender a esquecida arte de rezar. Claro que elas não sabem disto. Falam sobre outras coisas, dez mil coisas. Não sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos. Como disse T. S. Eliot, temos conhecimento do movimento, mas não da tranquilidade; conhecimento das palavras e ignorância da Palavra. Todo o nosso conhecimento nos leva para mais perto da nossa ignorância, e toda a nossa ignorância nos leva para mais perto da morte.
A terapia é a busca desse nome esquecido. E quando ele é lembrado e é pronunciado com toda a paixão do corpo e da alma, a esse ato se dá o nome de poesia. A esse ato se pode dar também o nome de oração.
Por detrás da nossa tagarelice (falamos muito e escutamos pouco) está escondido o desejo de orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única palavra que importa. Eu gostaria de demonstrar isso – e a demonstração começa com um passeio. Para começar, abra bem os olhos! Veja como este mundo é luminoso e belo! Tão bonito que Nietzsche até mesmo lhe compôs um poema:
“Olhei para este mundo – e era como se uma maçã redonda se oferecesse à minha mão, madura dourada maçã de pele de veludo fresco… Como se mãos delicadas me trouxessem um santuário, santuário aberto para o deleite de olhos tímidos e adorantes: assim este mundo hoje a mim se ofereceu…“
Tudo está bem. Tudo está em ordem. Nada impede o deleite dessa dádiva. Ninguém doente. Nenhuma privação econômica terrível. E há mesmo o gostar das pessoas com quem se vive, sem o que a vida teria um gosto amargo.
Mas isso não é tudo. Além das necessidades vitais básicas a alma precisa de beleza. E a beleza – o mundo a serve a mancheias. Está em todos os lugares, na lua, na rua, nas constelações, nas estações, no mar, no ar, nos rios, nas cachoeiras, na chuva, no cheiro das ervas, na luz que cintila na água crespa das lagoas, nos jardins, nos rostos, nas vozes, nos gestos.
Além da beleza estão os prazeres que moram nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, na pele. Como no último dia da criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido feito, viu que tudo era multo bom.
E, no entanto, sem que haja qualquer explicação para esse fato, tendo todas as coisas, a alma continua vazia. Álvaro de Campos colocou este sentimento num poema:
“Dá-me lírios, lírios, e rosas também. Crisântemos, dálias, violetas e os girassóis acima de todas as flores. Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante, Faltar-me-á sempre qualquer coisa. Minha dor é inútil como uma gaiola numa terra onde não há aves. E minha dor é silenciosa e triste como a parte da praia onde o mar não chega.“
Como se uma nuvem cinzenta de tristeza-tédio cobrisse todas as coisas. A vida pesa. Caminha-se com dificuldade. O corpo se arrasta. As pessoas procuram a terapia alegando faltar um lírio aqui, uma rosa ali, um crisântemo acolá. Buscam, nessas coisas, a única coisa que importa: a alegria. Acontece que as fontes da alegria não são encontradas no mundo de fora. É inútil que me sejam dadas todas as flores do mundo: as fontes da alegria se encontram no mundo de dentro.
O mundo de dentro: as pessoas religiosas lhe dão o nome de alma. O que é a alma? Alma são as paisagens que existem dentro do nosso corpo. Nosso corpo é urna fronteira entre as paisagens de fora e as paisagens de dentro. E elas são diferentes “O homem tem dois olhos“, disse o místico medieval Angelus Silésius. “Com um ele vê as coisas que passam no tempo. Com o outro ele vê o que é eterno e divino.“ Em algum lugar escondido das paisagens da alma se encontram as fontes da alegria – perdidas. Perdidas as fontes da alegria as paisagens da alma se apagam, o corpo fica como uma casa vazia. E quando a casa está vazia, vai-se a alegria. E as paisagens de fora ficam feias (a despeito de serem belas).
O mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria. Na alma não há gaiolas.
A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria.
Muitas orações são produtos da insensatez das pessoas. Acham que o universo estaria melhor se Deus ouvisse os seus conselhos. Pedem que Deus lhes dê pássaros engaiolados, muitos pássaros. Nisso protestantes e católicos são iguais. Tagarelam. E nem se dão ao trabalho de ouvir. Não sabem que a oração é só um gemido. “Suspiro da criatura oprimida“: haverá definição mais bonita? São palavras de Marx. Suspiro: gemido sem palavras que espera ouvir a música divina, a música que, se ouvida, nos traria a alegria.
Gosto de ler orações. Orações e poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo Reis, é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a voz de “um Ser qualquer, alheio a nós“, que nos fala. O nome do Ser? Não importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que eu gostaria de ter dito mas não consegui. As orações põem música no meu silêncio.
– Rubem Alves, no livro “Transparências da eternidade”. Campinas/SP: Editora Verus, 2002.
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
A História de Amor de Einstein com “Lina” — o seu adorado Violino
O famoso físico raramente saía de casa sem a sua música, e esta serviu de inspiração para o desenvolvimento de algumas das teorias mais importantes na ciência.
Um dia, Einstein desenvolveria a teoria da relatividade e a equação mais famosa alguma vez escrita: E=mc2. Ajudaria a criar as bases para a teoria quântica moderna, ganharia um Prêmio Nobel e tornar-se-ia sinônimo da palavra “gênio”.
Mas Elsa Einstein uma vez confidenciou a uma visita que ela se tinha apaixonado pelo seu elegante primo Albert por uma razão bem diferente: “porque ele tocou Mozart no violino de uma forma maravilhosa”.
Talvez esta razão não seja assim tão diferente. A música era muito mais do que uma coisa secundária no trabalho de Einstein; era central em tudo o que pensava e fazia.
“A música ajuda-o quando está a pensar nas suas teorias”, disse Elsa, que se tornou sua segunda esposa em 1919. “Ele vai ao seu escritório, volta, toca alguns acordes no piano, anota algo, retorna ao seu escritório.”
O próprio físico extraordinário disse, certa vez, que se não tivesse sido um cientista, certamente teria sido um músico.
“A vida sem tocar música é inconcebível para mim”, declarou. “Eu vivo os meus devaneios na música. Eu vejo a minha vida relacionada com a música … Eu tenho mais alegria na vida por causa da música. “
Foi um caso de amor que exigiu tempo para realmente acender a chama. Einstein tinha seis anos quando a sua mãe, Pauline, uma pianista bem-sucedida, o fez ter aulas de violino. Mas o instrumento foi uma tarefa árdua até ter descoberto as sonatas de violino de Mozart, aos 13 anos. A partir desse momento, a música tornou-se uma paixão duradoura.
Mozart continuou a ser o seu compositor favorito, juntamente com Bach, durante o resto da sua vida. Provavelmente, não era nenhuma coincidência: como muitos dos biógrafos de Einstein apontaram, a música de Bach e Mozart tem a mesma clareza, simplicidade e perfeição arquitetônica que Einstein sempre procurou nas suas próprias teorias.
Isso também pode explicar a sua aversão pela música menos organizada e mais emotiva do final do século XIX, em compositores como Wagner. (“Na maior parte das vezes, sinto aversão ao ouvi-lo”, disse Einstein uma vez acerca do compositor alemão.)
Naquela época pré-iTunes, Einstein esforçava-se para levar fisicamente a sua música onde quer que ele fosse. Raramente se deslocava a qualquer lugar sem o seu velho estojo de violino. Não tinha lá dentro sempre o mesmo instrumento — Einstein teve vários ao longo de sua vida — mas diz-se que ele dava a cada um, por sua vez, o mesmo apelido afetuoso: “Lina”, o diminutivo de violino. Nas suas viagens, ele costumava trazer Lina para tocar em serões de música de câmara na casa de alguém – e tinha muitas amizades ligadas à música.
Na década de 1930, Einstein e a Elsa instalaram-se em Princeton, Nova Jersey, deixando a casa na Alemanha nazi, e organizavam sessões de música de câmara na sua própria casa, todas as noites de quarta-feira. Essas sessões eram sacrossantas: Einstein estava sempre a reorganizar a sua agenda para ter certeza de que poderia estar presente.
Nas noites de Halloween, ele costumava ir para a rua surpreender os que vinham pedir doces ou travessuras com serenatas improvisadas de violino. E, na época do Natal, ele saía de casa para tocar com os coros de pessoas que entoam os típicos cantos natalício.
Como não existem gravações autênticas de Einstein a tocar, continua a haver um acesso debate sobre o quão bom ele era. Uma fotografia mostra-o a atuar de forma terrível, com o seu violino a descair para baixo, o seu arco a cruzar as cordas num ângulo em vez de ser perpendicular — todas as falhas que os professores de violino odeiam.
Einstein era, também, conhecido por não estar em sintonia. Diz a lenda que, quando se enganou mais uma vez numa entrada a tocar em quarteto com Fritz Kreisler, o grande e virtuoso violinista olhou para ele e perguntou: “O que é que se passa, professor? Não sabe contar?”
Ainda assim, as evidências sugerem que a Elsa não estava a ser muito delicada relativamente à qualidade de Einstein enquanto músico. Aos 16 anos, o primo de Elsa fez um exame de música na escola local, e o inspetor escreveu que “um estudante chamado Einstein brilhou num emocionante desempenho de um adágio de uma das sonatas de Beethoven”.
Muito mais tarde, um amigo escreveu que “há muitos músicos com uma técnica muito melhor, mas creio que não há nenhum que toque com mais sinceridade ou sentimento mais profundo.”
Einstein continuou a tocar quase até o fim da vida. Somente quando a sua mão esquerda envelhecida já não conseguia controlar o dedilhado é que pôs a Lina de parte de vez. Mas nunca perdeu a paixão pela música.
Num artigo publicado alguns meses após a morte de Einstein, em abril de 1955, o escritor Jerome Weidman lembrou-se de estar num luxuoso jantar onde estava retido a ouvir música de câmara. Durante uma pausa, confessou ao homem sentado a seu lado que ele não tinha ouvido para a música.
“Venha comigo”, disse Einstein, que arrastou imediatamente o envergonhado Weidman para fora do concerto e levou-o para cima, até um escritório que continha uma extensa coleção de vinis.
Lá, Einstein pôs-se a tocar trechos de Bing Crosby, Enrico Caruso, e muito mais — o pop de 1950 equivalente a Bruno Mars e Lady Gaga. Ele insistiu para que Weidman cantasse cada trecho que ouvia como uma forma de treinar o seu ouvido.
Quando Einstein achou que era suficiente, voltaram para baixo onde, para espanto de Weidman, ele foi capaz de apreciar a ária de Bach “Sheep may safely graze”, pela primeira vez.
De seguida, a anfitriã perguntou onde os dois homens tinham estado.
Eles estavam ocupados “na maior atividade de que o homem é capaz”, respondeu Einstein, “a abrir mais um fragmento da fronteira da beleza”.
Por Revista Prosa Verso e Arte
quinta-feira, 25 de novembro de 2021
O objeto feito pelo homem mais rápido não é um jato hipersônico ou nave espacial, mas uma grande tampa de bueiro... Quando os EUA começaram a fazer testes nucleares subterrâneos, ninguém sabia realmente o que iria acontecer. Uma bomba de teste foi colocada no fundo de um poço de 150 metros de profundidade em 26 de julho de 1957, e alguém achou que seria uma boa ideia colocar uma tampa de esgoto de ferro de meia tonelada em cima para conter a explosão. A bomba transformou o poço na maior vela romana do mundo, e a tampa do bueiro não foi encontrada em lugar nenhum. Robert Brownlee, um astrofísico que projetou o teste, queria repetir o experimento com câmeras de alta velocidade para descobrir o que aconteceu com a capa. Então, outro experimento foi criado, desta vez com 150 metros de profundidade, e uma tampa de esgoto de meia tonelada semelhante foi colocada no topo. Em 27 de agosto de 1957, eles detonaram a bomba. As câmeras de alta velocidade mal conseguiram ver a tampa quando ela saiu do topo do poço e caiu no esquecimento. Brownlee usou os quadros para calcular a velocidade em mais de 201.000 quilômetros por hora ... mais de cinco vezes a velocidade de escape da Terra, e o objeto feito pelo homem mais rápido da história.
Os físicos têm debatido a localização das duas tampas de bueiro desde então. Recentemente, com a ajuda de supercomputadores e muito mais conhecimento científico, os físicos têm certeza de que não teriam tempo de se queimar completamente antes de sair da atmosfera. Isso significa que ambas as peças restantes teriam passado pela órbita de Plutão por volta de 1961 e estão muito além da borda do sistema solar agora.
Mas será o Benedito?
Benedito Meia-Légua, que assombrou os escravagistas anos antes da abolição
Seu nome original era Benedito Caravelas e viveu até 1885, um líder nato e bastante viajado, conhecia muito do nordeste. Suas andanças conferira-lhe a alcunha de "Meia-légua". Andava sempre com uma pequena imagem de São Benedito consigo, que ganhou um significado mágico depois.
Ele reunia grupos de negros insurgentes e botava o terror nos fazendeiros escravagistas da região, invadindo as Senzalas, libertando outros negros, saqueando e dando verdadeiros prejuízos aos racistas.
Contam que ele era um estrategista ousado e criativo, criava grupos pequenos para evitar grandes capturas e atacavam fazendas diferentes simultaneamente. A genialidade do plano era que o líder de cada grupo se vestia exatamente como ele.
Sempre que um tinha o infortúnio de ser capturado, Benedito reaparecia em outras rebeliões. Os fazendeiros passaram a crer que ele era Imortal. E sempre que haviam notícias de escravos se rebelando vinha a pergunta "Mas será o Benedito?"
O mito ganhou força após uma captura dramática. Benedito chegou a São Mateus (ES) amarrado pelo pescoço, sendo puxado por um capitão do mato montado a cavalo. Foi dado como morto e levado ao cemitério dos escravos, na igreja de São Benedito.
Noutro dia, quando foram dar conta do corpo, ele havia sumido e apenas pegadas de sangue se esticavam no chão. Surgiu a lenda que ele era protegido pelo próprio São Benedito. Por mais de 40 anos ele e seu Quilombo, mais do que resistiram, golpearam o sistema escravocrata.
Meia-Légua só foi morto na sua velhice, manco e doente. Ele dormia em um tronco oco de árvore. Esconderijo que foi denunciado por um caçador. Seus perseguidores ficaram a espreita, esperando Benedito se recolher. Tamparam o tronco e atearam fogo.
Seu legado é um rastro de coragem, fé, ousadia e força para lutar pelo nosso povo, que ainda hoje é representado em encenações de Congada e Ticumbi pelo Brasil. Em meio as cinzas encontraram sua pequena imagem de São Benedito.
Todo dia 01 de Janeiro, o cortejo de Ticumbi vai buscar a pequena imagem do São Benedito do Córrego das Piabas e levar até a igreja em uma encenação dramática para celebrar a memória de Meia-Légua.
quarta-feira, 24 de novembro de 2021
terça-feira, 23 de novembro de 2021
A morte dos girassóis
Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
(Zero Hora, 18.3.1995)
Frase
Frase
"A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais.
segunda-feira, 22 de novembro de 2021
"Um dia escrevi que tudo é autobiografia, que a vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos e dizemos, nos gestos, na maneira como nos sentamos, como andamos e olhamos, como viramos a cabeça ou apanhamos um objeto do chão." Ontem como hoje, "pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas onipresente, que é o autor".
José Saramago in "Diário de Notícias"
A vida é maravilhosa, mesmo quando dolorida. Eu gostaria que na correria da época atual a gente pudesse se permitir, criar, uma pequena ilha de contemplação, de autocontemplação, de onde se pudesse ver melhor todas as coisas: com mais generosidade, mais otimismo, mais respeito, mais silêncio, mais prazer. Mais senso da própria dignidade, não importando idade, dinheiro, cor, posição, crença. Não importando nada.
Lya Luft