quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sofredora

Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora – o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.

Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.

Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso à flor da boca.

Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença.
Como Jesus a soluçar no Horto!

Augusto dos Anjos 

Carta de amor

Eu sabia que seria apenas depois de te teres ido embora que iria perceber a completa extensão da minha felicidade e, alas! o grau da minha perda também. Ainda não a consegui ultrapassar, e se não tivesse à minha frente aquela caixinha pequena com a tua doce fotografia, pensaria que tudo não teria passado de um sonho do qual não quereria acordar. Contudo os meus amigos dizem que é verdade, e eu próprio consigo-me lembrar de detalhes ainda mais charmosos, ainda mais misteriosamente encantadores do que qualquer fantasia sonhadora poderia criar. Tem que ser verdade. Martha é minha, a rapariga doce da qual todos falam com admiração, que apesar de toda a minha resistência cativou o meu coração logo no primeiro encontro, a rapariga que eu receava cortejar e que veio para mim com elevada confiança, que fortaleceu a minha confiança em mim próprio e me deu esperanças e energia para trabalhar, na altura que eu mais precisava.
Quando tu voltares, querida rapariga, já terei vencido a timidez e estranheza que até agora me inibiu perante a tua presença. Iremos sentar-nos de novo sozinhos naquele pequeno quarto agradável, vais-te sentar naquela poltrona castanha , eu estarei a teus pés no banquinho redondo, e falaremos do tempo em que não existirá diferença entre noite e dia, onde não existirão intrusos nem despedidas, nem preocupações que nos separem.

A tua amorosa fotografia. No início, quando eu tinha o original à minha frente não pensei nada sobre a mesma; mas agora, quanto mais olho para ela mais esta se assemelha ao objeto amado; espero que o rosto pálido se transforme na cor das nossas rosas, e que os braços delicados se desprendam da superfície e prendam a minha mão; mas a imagem preciosa não se move, parece apenas dizer: «Paciência! Paciência” Eu sou apenas um símbolo, uma sombra no papel; a tua amada irá voltar, e depois podes negligenciar-me de novo».

Eu gostaria imenso de colocar esta fotografia entre os deuses da minha casa que pairam acima da minha secretária, mas embora eu possa mostrar os rostos severos dos homens que reverencio, quero esconder a face delicada da minha amada só para mim. Vai continuar na tua pequena caixinha e eu não me atrevo a confessar a quantidade de vezes, nestas últimas vinte e quatro horas, que tranquei a minha porta para poder tirar a fotografia da caixa e refrescar a minha memória. 


Carta de Sigmund Freud a Martha Bernays, 19 de Junho 1882 (excerto)

Versículos do dia

Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei. Ele é a salvação da minha face e o meu Deus. 

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Lua Adversa

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...  


Cecília Meireles
Partido Comunista Chinês oferece até US$ 1.500 para quem denunciar cristãos
 
WILL R. FILHO - GospelMais
Está aberta oficialmente a temporada de caça aos cristãos na China! É assim que pode ser definida a mais nova tática de perseguição religiosa implementada pelo Partido Comunista Chinês (PCC), que agora está oferecendo recompensas em dinheiro para quem denunciar a existência de igrejas domésticas do país.

A organização Bitter Winter obteve documentos que comprovam a oferta de valores em dinheiro para quem denunciar os cristãos na China. Um deles foi obtido em um subdistrito na cidade de Nanyang, em Henan, onde consta a informação de que os locais deveriam reprimir o xie jiao, ou, “ensinamentos heterodoxos”.

Xie Jiao é uma expressão utilizada para classificar toda religião que é uma ameaça ao regime comunista chinês. Segundo a Bitter Winter, isso faz parte da nova “revolução cultural” chinesa, semelhante a que ocorreu entre os anos 1966 e 1976.

Naquela época, o Partido Comunista Chinês exterminou toda forma de cultura tradicional da China, impondo apenas as práticas e ideologias do PCC como regra de conduta e pensamento cultural.

Com o passar dos anos, houve maior flexibilidade na China, acompanhando o modelo de capital aberto. Contudo, no atual governo de Xi Jinping, acredita-se que está havendo o ressurgimento dessa versão ainda mais autoritária do regime, vindo dai o fechamento de igrejas nos últimos anos e a intensificação da perseguição religiosa aos cristãos.

Recompensas

Na fachada do escritório do Comitê da Aldeia Caizhuang, no distrito de Mangzhongqiao, parte do condado de Yucheng, na província de Henan, região centro-norte da China, há uma caixa de ferro pendurada, onde está escrito: “Caixa de Relatório de Crenças Religiosas”.
Caixas de ferro espalhadas pela China para colher denúncias contra os cristãos

A intenção é que os moradores depositem nessas caixas suas denúncias. “O governo municipal emitiu essas ‘caixas de informação’ para cada aldeia”, disse um informante local, segundo a Bitter Winter. “As autoridades estão empreendendo uma repressão contra as crenças religiosas e as pessoas na vila estão proibidas de acreditar em Deus”.

Em outra caixa, localizada no comitê da vila de Chenzhuang, no município de Mangzhongqiao. O texto diz: “Caixa para relatar locais privados (reuniões) e atividades missionárias”, informando o número de telefone para denúncias: “4431919”.

O informante pode receber uma recompensa de 200 a 1.000 RMB (cerca de US $ 30 a US $ 150), ou, se como resultado da denúncia houver um impacto ainda maior para o fechamento de igrejas, o valor pode ir de 5.000 a 10.000 RMB ($ 750 a $ 1.500), diz o relatório.

Avec Elegance

Hoje a maioria das pessoas que têm acesso à informação sabe que é peruíce usar uma blusa de paetês às duas da tarde e que é deselegante comparecer a um casamento sem gravata. Costanza Pascolato, Gloria Kalil e Claudia Matarazzo são alguns dos jornalistas especializados em ajudar os outros a não cometerem gafes na hora de se vestir ou de se portar à mesa. Mas existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância do comportamento.
É um dom que vai muito além do uso correto dos talheres e que abrange bem mais do que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza. É a elegância que nos acompanha da primeira hora da manhã até a hora de dormir e que se manifesta nas situações mais prosaicas, quando não há festa alguma nem fotógrafos por perto. É uma elegância desobrigada.

É possível detectá-la nas pessoas que elogiam mais do que criticam. Nas pessoas que escutam mais do que falam. E quando falam, passam longe da fofoca, das pequenas maldades ampliadas no boca a boca.

É possível detectá-la nas pessoas que não usam um tom superior de voz ao se dirigir à empregadas domésticas, garçons ou frentistas. Nas pessoas que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer em humilhar os outros. É possível detectá-la em pessoas pontuais.

Elegante é quem demonstra interesse por assuntos que desconhece, é quem dá um presente sem data de aniversário por perto, é quem cumpre o que promete e, ao receber uma ligação, não recomenda à secretária que pergunte antes quem está falando e só depois manda dizer se está ou não está.

Oferecer flores é sempre elegante. É elegante não ficar espaçoso demais. É elegante não mudar seu estilo apenas para se adaptar ao de outro. É muito elegante não falar de dinheiro em bate-papos informais. É elegante retribuir carinho e solidariedade.

Sobrenome, jóias e nariz empinado não substituem a elegância do gesto. Não há livro que ensine alguém a ter uma visão generosa do mundo, a estar nele de uma forma não arrogante. Pode-se tentar capturar esta delicadeza natural através da observação, mas tentar imitá-la é improdutivo.

A saída é desenvolver em si mesmo a arte de conviver, que independe de status social: é só pedir licencinha para o nosso lado brucutu, que acha que “com amigo não tem que ter estas frescuras”. Se os amigos não merecem uma certa cordialidade, os inimigos é que não irão um dia desfrutá-la. Educação enferruja por falta de uso. E, detalhe: não é frescura.  


terça-feira, 28 de abril de 2020

Desencato

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.


– Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira 

Volúpia imortal

Cuidas que o genesíaco prazer,
Fome do átomo e eurítmico transporte
De todas as moléculas, aborte
Na hora em que a nossa carne apodrecer?!

Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,
Para a perpetuação da Espécie forte,
Tragicamente, ainda depois da morte,
Dentro dos ossos, continua a arder!

Surdos destarte a apóstrofes e brados,
Os nossos esqueletos descamados,
Em convulsivas contorções sensuais,

Haurindo o gás sulfídrico das covas,
Com essa volúpia das ossadas novas
Hão de ainda se apertar cada vez mais!

Augusto dos Anjos 

domingo, 26 de abril de 2020




Coronavírus: uma ocasião para redescobrir o poder do silêncio


Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros. Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

Mia Couto
A imagem pode conter: uma ou mais pessoas e close-up

Machado de Assis


Florbela Espanca


"Não me parece que o fato de eu ser como sou possa ser uma causa direta de um conflito com alguém que é outro. Se eu reconheço o outro como o outro, tenho, por motivos éticos, de respeitá-lo, e então não haveria nenhum conflito. Porque quando aquilo que chamamos de identidade se transforma em agressividade, não é por culpa da diferença, mas sim da necessidade de poder. Se me torno agressivo em relação ao outro na afirmação da minha identidade, não é por sermos diferentes, mas sim porque quero exercer o meu poder sobre ele."


José Saramago, In: Palavras de Saramago

sábado, 25 de abril de 2020






"(...) era isto ao entardecer, quando o rumor das ondas mal se ouve, breve e contido como um suspiro sem causa."

José Saramago, em A Jangada de Pedra.

Versos a um coveiro

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!


Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!


Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais


Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números
A tua conta não acaba mais!



Augusto dos Anjos – Eu e Outras poesias
– L&PM Pocket


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Chuva em Pombal-PB atinge 140mm na noite/madrugada de ontem

Segundo dados coletados por mim, a partir do pluviômetro localizado na Rua Odilon Lopes, 218, Centro, Pombal-PB, o índice pluviométrico registrado na noite/madrugada de ontem, 23 de abril/2020, correspondeu ao volume de precipitação de 140mm de chuva na nossa cidade (área urbana). 

No Sistema Internacional de Unidades, a unidade de pluviosidade (ou "unidade de medida de precipitação") é o milímetro (mm). Uma pluviosidade de 1 milímetro equivale ao volume de 1 litro (L) de água de chuva que se acumulou sobre uma superfície de área igual a 1 metro quadrado.

Teófilo Júnior

É preciso maestria para tocar além do corpo, a alma.

Adriele Teodoro


Zé Simão: "Meus sapatos estão pensando que eu morri."

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Imagem da Semana

A fotografia foi tirada por Cláudia Alejandra Mora Abanto
Aos 40 anos, Franz Kafka (1883-1924) que nunca se casou e não tinha filhos, passeava pelo parque de Berlin quando conheceu uma jovem que chorava porque tinha perdido sua boneca favorita. Ela e Kafka procuraram a boneca sem sucesso.

Kafka disse-lhe para se encontrar lá no dia seguinte e eles voltariam atrás dela.

No dia seguinte, quando ainda não encontraram a boneca, Kafka deu à garota uma carta "escrita" pela boneca que dizia: "Por favor, não chores. Fiz uma viagem para ver o mundo. Vou te escrever sobre as minhas aventuras."

Então começou uma história que continuou até o fim da vida de Kafka.

Durante os encontros, Kafka leu as cartas da boneca cuidadosamente escritas com aventuras e conversas que a garota achava adoráveis.

Finalmente, Kafka trouxe-lhe a boneca (comprou uma) que tinha voltado a Berlim. "Não se parece nada com a minha boneca", disse a garota.


Kafka entregou-lhe outra carta em que a boneca escrevia: "minhas viagens, mudaram-me." a garota abraçou a nova boneca e trouxe-a toda feliz para casa.


Um ano depois, Kafka morreu.


Muitos anos depois, a garota adulta encontrou uma cartinha dentro da boneca. Na pequena carta assinada por Kafka, dizia:

" Tudo o que você ama provavelmente será perdido, mas no final o amor voltará de outra forma."

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? Quem as comprava? Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava história. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que ouvisse, não entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu que não participava do auditório imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para uma cidade que parecida feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos: que sempre parecem personagens de Lope da Vega. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outras dizem que essas coisas só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles 
 
Crônica extraída do Livro “Escolha o seu sonho” de Cecília Meireles. 4ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora, 2016.

quarta-feira, 22 de abril de 2020




De nada vale tentar ajudar aqueles que não se ajudam a si mesmos.

Confúcio

É sempre assim. Morre-se. Não se compreende nada. Nunca se tem tempo de aprender. Envolvem-nos no jogo. Ensinam-nos as regras e à primeira falta matam-nos.

Ernest Hemingway

terça-feira, 21 de abril de 2020

Covid-19

Tá valendo tudo...

Meu testamento

Quando percebi que tinha meus dias contados
Que minha vida, rapidamente, chegaria ao fim
Pensei fazer meu testamento.


Dei balanço em tudo que possuía
Contei casas, contei dinheiro
Meus livros grande tesouro!
Meus ricos pertences,
Minhas antiguidades...


Depois... somei tudo,
E vi que tudo era nada!
Cacarecos sem valor.
Coisas inúteis e supérfluas,
Expostas às calamidades,
Aos riscos dos incêndios
E dos ladrões.


Para que testemunhar
Esses bens que se podem acabar
Que as traças podem roer
Ou o fogo devorar,
Se outros bens imperecíveis
Eu conseguí amealhar?


Senhor, Tu mesmo disseste
Que nenhum copo d'água
Dado ao meu irmão
Ficaria sem recompensa
No reino do Teu Pai!

Nos celeiros eternos
Vou procurar guardar
Outras riquezas
Não as da terra!


Meus filhos não herdarão de mim
Castelos, nem fazendas,
Nem ricas propriedades...
Não deixarei ouro nem prata,
Nem dinheiro em caixas fortes...
Tudo é vaidade sobre a terra
Nada há que sempre dure...
Tudo, sem valor que me seduza.

Meu testamento é minha fé,
É minha esperança,
É todo meu amor!


Que meus filhos possam herdar de mim
Todo o bem dessa fé
Que foi a minha luz,
Mais clara e mais querida,
Dessa esperança que foi a minha força
Dessa caridade
Que me fez ver Deus
Em toda a natureza
Em todas as pessoas,
Em tudo que existe
E Dêle provém!
Caridade que é amor,
Amor que é vida!


Jeanete de Moraes Souza

Primeira aventura de Alexandre

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.

— Vou contar aos senhores... principiou Alexandre amarrando o cigarro de palha.

Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:

— Conte, meu padrinho.

Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se .na rede e perguntou:

— Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?

Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.

— Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.

Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:

— Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?

— Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.

Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:

— Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?

— Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar.

— Está certo, resmungou mestre Gaudêncio curandeiro. É bom não atrapalhar.

— Então escutem, prosseguiu Alexandre. Um domingo eu estava no copiar, esgaravatando unhas com a faca de ponta, quando meu pai chegou e disse:

— "Xandu, você nos seus passeios não achou roteiro da égua pampa?" E eu respondi: — "Não achei, nhor não." — "Pois dê umas voltas por aí, tornou meu pai Veja se encontra a égua." — "Nhor sim." Peguei um cabresto e saí de casa antes do almoço, andei, virei, mexi, procurando rastos nos caminhos e nas veredas. A égua pampa era um animal que não tinha agüentado ferro no quarto nem sela no lombo. Devia estar braba, metida nas brenhas, com medo de gente. Difícil topar na catinga um bicho assim". Entretido, esqueci o almoço e à tardinha descansei no bebedouro, vendo o gado enterrar os pés na lama. Apareceram bois, cavalos e miunça, mas da égua pampa nem sinal. Anoiteceu, um pedaço de lua branqueou os xiquexiques e os mandacarus, e eu. me estirei na ribanceira do rio, de papo para. o ar, olhando o céu, fui-me amadornando devagarinho, peguei no sono, com o pensamento em Cesária. Não sei quanto tempo dormi, sonhando com Cesária. Acordei numa escuridão medonha. Nem pedaço de lua nem estrelas, só se via o carreiro de Sant'lago. E tudo calado, tão calado que se ouvia perfeitamente uma formiga mexer nos garranchos e uma folha cair. Bacuraus doidos faziam às vezes um barulho grande, e os olhos deles brilhavam como brasas. Vinha de novo a escuridão, os talos secos buliam,as folhinhas das catingueiras voavam. Tive desejo de. voltar para casa, mas o corpo morrinhento não me ajudou. Continuei deitado, de barriga para cima, espiando o carreiro de Sant'lago. e prestando atenção ao trabalho das formigas. De repente. conheci que bebiam água ali perto. Virei-me, estirei o pescoço e avistei lá embaixo dois vultos malhados, um grande e um pequeno, junto da cerca do bebedouro. A princípio não pude vê-los direito, mas firmando a vista consegui distingui-las por causa das malhas brancas. — "Vão ver que é a égua pampa, foi o que eu disse. Não é senão ela. Deu cria no mato e só vem ao bebedouro de noite." Muito ruim o animal aparecer .àquela hora. Se fosse de dia e eu tivesse uma corda, podia laçá-lo num instante. Mas desprevenido, no escuro, levantei-me azuretado, com o cabresto na mão, procurando meio de sair daquela dificuldade. A égua ia escapar, na certa. Foi aí que a idéia me chegou.

— Que foi que o senhor fez? perguntou Das Dores curiosa.

Alexandre chupou o cigarro, o olho torto arregalado, fixo na parede. Voltou para Das Dores o olho bom e explicou-se:

— Fiz tenção de saltar no lombo do bicho e largar-me com ele na catinga. Era o jeito. Se não saltasse, adeus égua pampa. E que história ia contar a meu pai? Hem? Que história ia contar a meu pai, Das Dores?

A benzedeira de quebranto não deu palpite, e Alexandre mentalmente pulou nas costas do animal:

— Foi o que eu fiz. Ainda bem não me tinha resolvido, já estava escanchado. Um desespero, seu Libório, carreira como aquela só se vendo. Nunca houve outra igual. O vento zumbia nas minhas orelhas, zumbia como corda de viola. E eu então... Eu então pensava, na tropelia desembestada: — "A cria, miúda, naturalmente ficou atrás e se perde, que não pode acompanhar a mãe, mas esta amanhã está ferrada e arreada." Passei o cabresto no focinho da bicha e, os calcanhares presos nos vazios, deitei-me, grudei-me com ela, mas antes levei muita pancada de galho e muito arranhão de espinho rasga-beiço. Fui cair numa touceira cheia de espetos, um deles esfolou-me a cara, e nem senti a ferida: num aperto tão grande não ia ocupar-me com semelhante ninharia. Botei-me para fora dali, a custo, bem maltratado. Não sabia a natureza do estrago, mas pareceu-me que devia estar com a roupa em tiras e o rosto lanhado. Foi o que me pareceu. Escapulindo-se do espinheiro, a diaba ganhou de novo a catinga, saltando bancos de macambira e derrubando paus, como se tivesse azougue nas veias. Fazia um barulhão com as ventas, eu estava espantado, porque nunca tinha ouvido égua soprar daquele jeito. Afinal subjuguei-a, quebrei-lhe as forças e, com puxavantes de cabresto, murros na cabeça e pancadas nos queixos, levei-a. para a estrada. Ai ela compreendeu que não valia a pena teimar e entregou os pontos. Acreditam vossemecês que era um vivente de bom coração? Pois era. Com tão pouco ensino, deu para esquipar. E eu, notando que a infeliz estava disposta a aprender, puxei por ela, que acabou na pisada baixa e num galopezinho macio em cima da mão. Saibam os amigos que .nunca me desoriento. Depois de termos comido um bando de léguas naquele pretume de meter o dedo no olho, andando para aqui e para acolá, num rolo do inferno, percebi que estávamos perto do bebedouro. Sim senhores. Zoada tão grande, um despotismo de quem quer derrubar o mundo — e agora a pobre se arrastava quase no lugar da saída, num chouto cansado. Tomei o caminho de casa. O céu se desenferrujou, o sol estava com vontade de aparecer. Um galo cantou, houve nos ramos um rebuliço de penas. Quando entrei no pátio .da fazenda, meu pai e os negros iam começando o ofício de Nossa Senhora. Apeei-me, fui ao curral, amarrei o animal no mourão, cheguei-me à casa, sentei-me no copiar. A reza acabou lá dentro, e ouvi a fala de meu pai: — "Vocês não viram por aí o Xandu?" — "Estou aqui, nhor sim, respondi cá de fora" — "Homem, você me dá cabelos brancos, disse meu pai abrindo a porta. Desde ontem sumido!" — "Vossemecê não me mandou procurar a égua pampa?" —"Mandei, tornou o velho. Mas não mandei que você dormisse no mato, criatura dos meus pecados. E achou roteiro dela?" — "Roteiro não achei, mas vim montado num bicho. Talvez seja a égua pampa., porque tem malhas. Não sei, nhor não, só se vendo. O que sei é que é bom de verdade: com umas voltas que deu ficou pisando baixo, meio a galope. E parece que deu cria: estava com outro pequeno." Aí a barra apareceu, o dia clareou. Meu pai, minha mãe, os escravos e meu irmão mais novo, que depois vestiu farda e chegou a tenente de polícia, foram ver a égua pampa. Foram, mas não entraram no curral: ficaram na porteira, olhando uns para os outros, lesos, de boca aberta. E eu também me admirei, pois não.

Alexandre levantou-se, deu uns passos e esfregou as mãos, parou em frente de mestre Gaudêncio, falando alto, gesticulando:

— Tive medo, vi que tinha feito uma doidice. Vossemecês adivinham o que estava amarrado no mourão? Uma onça-pintada, enorme, da altura de um cavalo. Foi por causa das pintas brancas que eu, no escuro, tomei aquela desgraçada pela égua pampa.

Graciliano Ramos

Texto extraído do livro “Alexandre e outros heróis”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1981, pág. 11.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Biblioteca do mosteiro de Sankt Florian, Áustria


Quando o silêncio é tudo o que nos restou, parece-nos conveniente diminuir o ritmo, puxar o freio, recolher-se, mudar a rota e evitar colisão.

Teófilo Júnior

Frase

"A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz". 

 Sigmund Freud

domingo, 19 de abril de 2020

Humildade

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.  


Cora Coralina

Serenata

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.  


Verbo Ser

Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.


Carlos Drummond de Andrade

Versículos do dia

Mas em todas estas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois estou convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.