terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Crônica de Ano Novo
“Existem muitas superstições sobre a
melhor maneira de entrar o Ano-Novo. Na nossa casa, por exemplo, nunca
falta um prato de lentilha para ser consumido nos primeiros minutos do
ano que começa. Dá sorte. Ouvi dizer que na Espanha, ao soar da
meia-noite, deve-se comer uma uva para cada badalada do relógio. Este
costume chegou à Bulgária mas, por uma falha na tradução, lá se come um
melão para cada batida do relógio, e os hospitais ficam cheios no dia
1º. Na Suíça, comem o relógio.
Algumas crenças persistem através do tempo, desafiando toda lógica.
Se o champanhe aberto à meia-noite não estourar e se tiver alguém na
família chamado Edgar, é sinal de que a casa será arrasada por uma
manada de elefantes e o champanhe está choco. Na Rússia, depois de
brindarem o Ano-Novo com vodca, os convidados devem atirar suas taças
contra a parede e depois ficar muito brabos porque não há mais copos na
casa e atirar o anfitrião contra a parede. De qualquer maneira, a festa
termina cedo.
Na Índia se a primeira criança que
nascer no Ano-Novo tiver bigode, fumar de piteira e pedir para falar
urgentemente com o Kofi Anan, é mau sinal. Na Polinésia, em certas
tribos primitivas, o guerreiro mais audaz deve levar a virgem mais
bonita até a boca do vulcão e atirá-la para a morte, como um sacrifício
aos deuses. Mas a encosta do vulcão é comprida, os dois param para
descansar um pouco e, quando chegam à boca do vulcão, estabelece-se o
paradoxo: se o guerreiro era audaz, a moça não é mais virgem, se a moça
ainda é virgem, o guerreiro não era audaz, e o sacrifício sempre fica
para o ano que vem. Na Austrália, todos se atiram contra a parede.
Entrar o Ano-Novo de gravata-borboleta
pode comprometer seriamente as relações entre o Oriente e o Ocidente. O
primeiro animal que você encontrar na rua no Ano-Novo pode significar
uma coisa. Cachorro é sorte. Gato é dinheiro. Rato é saúde. Um bando de
hienas é azar, corra. Um cavalo roxo dançando o xaxado na calçada
significa que você está bêbado. Vá dormir.
Em certos lugares, é costume derramar champanhe no decote da mulher
ao seu lado, o que lhe trará, a longo prazo, bons negócios, e, a curto
prazo, um tapa-olho. Se você estiver num réveillon junto com seu patrão,
não esqueça de se colocar estrategicamente para ser o primeiro a
abraçá-lo à meia-noite. Dance com a mulher dele. Insista para que ele
dance com a sua. Proponha vários brindes. Pule em cima da mesa. Proponha
mais brindes. Diga que agora você é quem vai dançar com o patrão e não
quer nem saber. Acabe lhe dizendo algumas verdades. Proteste que ninguém
precisa segurar você, você está sóbrio, entende? Sóbrio! Só não sabe
como uma manada de elefantes roxos invadiu o salão, ou será que a mulher
do patrão trouxe a família toda? No dia 1º você não se lembrará de
nada. No dia 2, você vai procurar outro emprego. Chato.
Outro costume é fazer previsões na véspera do Ano-Novo. Pode chover.
Alguém, em algum lugar do Brasil, está dizendo: “Boas-entradas nada, eu
quero saber onde fica a saída…” E a previsão mais fácil de todas…
– Qual é?
– Amanhã eu vou estar de ressaca!
Enfim, o Ano-Novo já está quase aí e, apesar de muita gente no Brasil
telefonar para os parentes no Japão, onde o 2020 chegará mais cedo,
querendo saber que tal o ano, como quem pergunta como é que está a água,
ninguém sabe como ele será. Farei o possível para entrar nele com o pé
direito, mas, quando perceber, ele é que terá entrado em mim, não dará
para recuar.
Só sei uma coisa. Assim que o relógio terminar de bater a meia-noite,
comerei meu prato de lentilha para dar sorte. Pedirei outro. E
derramarei lentilha no colo, destruindo para sempre A) um bom par de
calças e B) minha fé em qualquer tipo de superstição.”
Obs.: No texto original, o autor se refere ao ano de 2013.
Luís Fernando Veríssimo
Frase
“Enquanto houver um louco, um poeta e um amante, haverá sonho, amor e
fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança.”
Lembrando Shakespeare
Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos.
domingo, 29 de dezembro de 2019
A árvore de Natal da casa de Cristo, de Fiodor Dostoiévski
Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou
menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio.
Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se
exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de
um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo
prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa.
Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num
colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à
guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse
lugar?
Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente
caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na
antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se
aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado
cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela
festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática,
que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando
suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele
tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado
alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de
dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a
obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha
caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua
mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as
paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada
inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante,
soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no
leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade,
teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da
escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas
vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.
Senhor! que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá,
de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar
toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos
postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda
gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães,às centenas e aos
milhares,uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão
quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! se ele ao
menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande
algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o
frio, ah! este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos
cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine
contra a calçada;toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! como
gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe
doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para
fingir que não vê.
Eis uma rua ainda: como é larga!
Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e
como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! uma grande
vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o
teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos
objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No
quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e
brincam, comem e bebem alguma coisa. Eis ali uma menina que se pôs a
dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da
vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos
seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não
podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de
que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis
que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra
árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de
amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que
distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta
se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se
aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! com que gritos e
gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe
furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua.
Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar
sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino
apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem
vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os
dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando,
de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém,
que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três
grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem
vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé
junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as
delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se
mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por
causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas,
e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a
rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que
existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão
engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava
por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe
de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma
rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar:
aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas
pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira,
penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo
menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."
Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e
bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e
os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé
de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como
seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os
bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que
eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma
canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"
- Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.
Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então
acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o
abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A
maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha
visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo
brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não,
são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas
brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com
eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.
- Mamãe! mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo
abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a
história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E
vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes
beijos.
- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...
E
soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora
crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde
tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de
Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário
finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que
grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar
mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse
momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no
meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E
as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram;
cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para
elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas,
recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...
E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha.
Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus.
Testamento
Tudo o que tenho não tem posse:
o rio e suas ocultas fontes,
A nuvem grávida de Novembro,
O desaguar de um rio em tua boca.
o rio e suas ocultas fontes,
A nuvem grávida de Novembro,
O desaguar de um rio em tua boca.
Só me pertence o que não abraço.
Eis como eterno me condeno:
Amo o que não tem despedida.
Mia Couto, In “Vagas e Lumes”
Eis como eterno me condeno:
Amo o que não tem despedida.
Mia Couto, In “Vagas e Lumes”
“…E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
– João Cabral de Melo Neto, trecho de “Morte e Vida Severina”.
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
– João Cabral de Melo Neto, trecho de “Morte e Vida Severina”.
A educação pela pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu andensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu andensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
– João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo
Neto”. [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª
ed., 2001, pag. 185.
sábado, 28 de dezembro de 2019
Na faixa etária dos 14 aos 17 anos, quase 60% dos adolescentes brasileiros têm seus direitos violados
O Brasil vive uma triste realidade, com um em cada quatro brasileiros vivendo na pobreza. As crianças no Brasil são as que mais sofrem.
Elaborado pelo UNICEF, o relatório ‘Pobreza na Infância e na Adolescência’
apontou que 39,7% das crianças entre 0 e 5 anos têm seus direitos
violados no Brasil. Isso representa mais de 1 criança em cada 3.
Na faixa etária dos 14 aos 17 anos, quase 60% dos adolescentes brasileiros têm seus direitos violados.
No país, 14,3% das crianças e adolescentes não conseguem ter o
direito ao acesso à água garantido. A desigualdade racial também se faz presente no levantamento, pois crianças negras possuem uma taxa de privação de 58,3%, enquanto as brancas têm uma taxa de 40%.
Segundo o relatório, no Brasil, 3,1% das crianças e dos adolescentes
não têm um banheiro em casa. E a principal privação em relação a
saneamento está no descarte de resíduos: 21,9% das meninas e dos meninos
brasileiros vivem em domicílios com apenas fossas rudimentares, uma
vala ou esgoto sem tratamento.
No total, 24,8% das crianças e dos adolescentes estão em privação de
saneamento. O problema afeta de maneira semelhante meninas e meninos, em
todas as faixas etárias. A maior diferença se dá entre brancos e
negros. Entre crianças e adolescentes privados de saneamento, 70% são
negros.
A moradia também é um direito violado das crianças e adolescentes no
Brasil. Viver em uma casa com quatro ou mais pessoas por dormitório e
cujas paredes e tetos são de material inadequado é a realidade de 11%
das crianças e dos adolescentes de até 17 anos, que não têm o direito à
moradia garantido: 6,8% vivem em casas de teto de madeira reaproveitada e
4 pessoas por quarto, em privação intermediária; e 4,2% em casas com 5
ou mais pessoas por dormitórios e teto de palha, em privação extrema.
A privação de moradia afeta igualmente meninas e meninos, mas incide
mais entre crianças mais novas do que entre adolescentes. A grande
maioria das crianças e dos adolescentes privados, sete em cada dez, é
negra.
Maria Fernanda Garcia
Minha Vida Meu Amor
Olha minha vida meu
amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
Dalton Trevisan
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
Dalton Trevisan
O cântico da terra
Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
Cora Coralina
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
Cora Coralina
sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em
mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo
compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma
exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não
se sente bem onde está, que tem saudades...sei lá de quê!"
- Florbela Espanca, em "Carta nº 147".
Soneto - Mulher Abstrata
Sou quem sou, simplesmente mulher, não fujo, nem nego,
Corro risco, atropelo perigo, avanço sinal, ignoro avisos.
Procuro viver, sem medo, sem dor, com calor, aconchego,
Supro carências, rego desejos, desabrocho em risos...
Matéria cobiçada... na tez macia, no calor ardente.
Alma pura, envolta em completa fissura. Sem frescuras!
Encontro prazer na forma completa, repleta, latente.
Meretriz sem pudor,mulher no ponto, uva madura!
Sou quadro abstrato, me entrego no ato à paixão que aflora.
Sou enigma permanente, sem ponto final, sem continências,
Sou mulher tão somente, vivendo o momento, sorvendo as horas.
Sou pétala recolhida, sem forma, sem cor, completa em essência.
Exalo a esperança, transpiro vontades. Não me tenhas senhora.
Sou mulher insolúvel, nada volúvel. Vivo a vida em reticências...
Ângela Bretas
Corro risco, atropelo perigo, avanço sinal, ignoro avisos.
Procuro viver, sem medo, sem dor, com calor, aconchego,
Supro carências, rego desejos, desabrocho em risos...
Matéria cobiçada... na tez macia, no calor ardente.
Alma pura, envolta em completa fissura. Sem frescuras!
Encontro prazer na forma completa, repleta, latente.
Meretriz sem pudor,mulher no ponto, uva madura!
Sou quadro abstrato, me entrego no ato à paixão que aflora.
Sou enigma permanente, sem ponto final, sem continências,
Sou mulher tão somente, vivendo o momento, sorvendo as horas.
Sou pétala recolhida, sem forma, sem cor, completa em essência.
Exalo a esperança, transpiro vontades. Não me tenhas senhora.
Sou mulher insolúvel, nada volúvel. Vivo a vida em reticências...
Ângela Bretas
O Peru de Natal
No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a mulher
pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru, alegrou-se muito, visto
que, com o passar dos anos, não lhe restara outra paixão a não ser a gula. Imensa
porém foi sua surpresa quando, ao chegar em casa por volta de meio-dia, encontrou o peru
não na cozinha, enfiado no espeto e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na
sala de visita. O peru, vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns
de seda, calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso,
conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa atitude e
num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações, aproveitando um
momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para frente e dizer com
cortesia mas também com firmeza: "Com licença, senhor... não sei se estou
enganado... mas... mas me parece que o seu lugar não deveria ser aqui... repito, não sei
se estou enganado... mas... o seu lugar deveria ser..." ia dizer "na
panela", quando a mulher que, como ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe
no pé; e Curcio, que sabia por longa experiência o que significava aquele gesto,
calou-se. A mulher, então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe
em voz baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre,
rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse particular e
evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos comentários, ele queria acabar
com o casamento que estava quase para se concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e
jurou que não abriria mais a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado
teve apenas o efeito de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo.
Logo depois voltou a conversar com a filha de Curcio.
"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, "com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a panela", pensava, "para a panela...”
Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.
Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido peru".
Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. "Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.
Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.
Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.
Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.
No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.
Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.
Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres", pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.
"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, "com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a panela", pensava, "para a panela...”
Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.
Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido peru".
Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. "Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.
Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.
Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.
Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.
No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.
Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.
Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres", pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.
Alberto Moravia
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
— Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
— Papai?
Pausa:
— Papai?
Dona Bernardina intervém:
— Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
— Que é? que desejam vocês?
— Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
— Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
— Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
— Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
— Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
— Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
— Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
— Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
— A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
— A senhora o que quer é enfezar-me!
— Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
— Proletário — acudiu o senhor Rodrigues — é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
— Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
— Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
— Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: — Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
— Mas se eu sei!
— Pois se sabe, diga!
— Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
— Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
— Não fosse tolo — observa dona Bernardina — e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
— Pois sim — acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão — pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
— Sim! Sim! façam as pazes! — diz a menina em tom meigo e suplicante. — Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
— Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
— É boa! — brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio — é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
— Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
— Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
— Ah! — suspiram todos, aliviados.
— Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo
Único brasileiro na lista, Moro é eleito uma das 50 personalidades da década pela Financial Times
A revista destaca a escolha do ministro por ele ser protagonista de "uma investigação que abalou as estruturas políticas da América Latina"
Focus
A Financial Times escolheu o ministro da Justiça e Segurança Pública,
Sergio Moro, como uma das 50 personalidades que marcaram a década. A
publicação diz que ele, o único brasileiro na lista, “liderou uma investigação que abalou as estruturas políticas da América Latina”.
“No último ano, Moro se tornou ministro da Justiça no governo de
extrema-direita do presidente Jair Bolsonaro – um movimento que causou
dúvidas sobre sua independência como juiz, mas que poderá prepará-lo
para uma corrida à Presidência da República”, projetou a revista. As informações são do O Antagonista.
Uma histórica trégua de Natal na 1ª Guerra Mundial, em 1914. Veja o vídeo em que Paul McCartney tentou reproduzir o evento.
No natal de 1914, algo realmente surpreendente aconteceu. A
incrivelmente sangrenta Primeira Guerra Mundial, responsável pela morte
de 20 milhões de pessoas em apenas quatro anos, parou para o Natal.
Numa espécie de trégua não oficial, mais de 100 mil soldados ingleses
e alemães da frente ocidental largaram as armas e trocaram
cumprimentos, conversaram, riram, beberam, e há registros até de uma
partida de futebol entre soldados inimigos.
Acredita-se que tenha sido uma iniciativa de soldados alemães que tinham
ligações familiares e de amizade com ingleses que começaram a acenar e
dizer num inglês tosco "you don't fight, we don't fight" e cantar músicas natalinas, com um enorme risco de serem alvejados. Deu certo.
Em algumas frentes de batalha, a paz durou até o ano novo, irritando
vários generais que mandavam os soldados pararem com aquilo e voltarem
pra guerra.
É claro que eu não compro as teses suicidas e ginasianas do pacifismo
unilateral, mas a trégua do Natal de 1914 é um momento que encarna
perfeitamente o espírito do dia e do aniversariante.
- Paul McCartney tentou recriar essa noite no clipe de "Pipes of Peace" de 1983. Veja o vídeo.
Alexandre Borges
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
Eu não gosto de você, Papai Noel !
Eu não gosto de você, Papai Noel!
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.
Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.
Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.
Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.
O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.
Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.
Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou ele não deu ouvidos,
saiu correndo e nunca mais voltou.
Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.
Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.
Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.
Também não gosto desse seu papel
de vender ilusões à burguesia.
Se os garotos humildes da cidade
soubessem do seu ódio à humildade,
jogavam pedra nessa fantasia.
Você talvez nem se recorde mais.
Cresci depressa, me tornei rapaz,
sem esquecer, no entanto, o que passou.
Fiz-lhe um bilhete, pedindo um presente
e a noite inteira eu esperei, contente.
Chegou o sol e você não chegou.
Dias depois, meu pobre pai, cansado,
trouxe um trenzinho feio, empoeirado,
que me entregou com certa excitação.
Fechou os olhos e balbuciou:
“É pra você, Papai Noel mandou”.
E se esquivou, contendo a emoção.
Alegre e inocente nesse caso,
eu pensei que meu bilhete com atraso,
chegara às suas mãos, no fim do mês.
Limpei o trem, dei corda,
ele partiu dando muitas voltas,
meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez.
O resto eu só pude compreender quando cresci
e comecei a ver todas as coisas com realidade.
Meu pai chegou um dia e disse, a seco:
“Onde é que está aquele seu brinquedo?
Eu vou trocar por outro, na cidade”.
Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar
e como quem não quer abandonar
um mimo que nos deu, quem nos quer bem,
disse medroso: “O senhor vai trocar ele?
Eu não quero outro brinquedo, eu quero aquele.
E por favor, não vá levar meu trem”.
Meu pai calou-se e pelo rosto veio
descendo um pranto que, eu ainda creio,
tanto e tão santo, só Jesus chorou!
Bateu a porta com muito ruído,
mamãe gritou ele não deu ouvidos,
saiu correndo e nunca mais voltou.
Você, Papai Noel, me transformou num homem
que a infância arruinou, sem pai e sem brinquedos.
Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre
para a riqueza do menino pobre
que sonha o ano inteiro com o Natal.
Meu pobre pai doente, mal vestido,
para não me ver assim desiludido,
comprou por qualquer preço uma ilusão,
e num gesto nobre, humano e decisivo,
foi longe pra trazer-me um lenitivo,
roubando o trem do filho do patrão.
Pensei que viajara,
no entanto depois de grande,
minha mãe, em prantos,
contou-me que fôra preso
e como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia.
Foi definhando, até que Deus, um dia,
entrou na cela e o libertou pro céu.
Aldemar Paiva
Exigências da vida moderna
Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro. E
uma banana pelo potássio. E também uma laranja pela vitamina C.
Uma xícara de chá verde sem açúcar para prevenir a diabetes.
Todos os dias deve-se tomar ao menos dois litros de água. E uriná-los, o que consome o dobro do tempo.
Todos os dias deve-se tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe bem o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão).
Cada dia uma Aspirina, previne infarto.
Uma taça de vinho tinto também. Uma de vinho branco estabiliza o sistema nervoso.
Um copo de cerveja, para… não lembro bem para o que, mas faz bem.
O benefício adicional é que se você tomar tudo isso ao mesmo tempo e tiver um derrame, nem vai perceber.
Todos os dias deve-se comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para fazer um pulôver.
Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente.
E nunca se esqueça de mastigar pelo menos cem vezes cada garfada. Só
para comer, serão cerca de cinco horas do dia… E não esqueça de escovar
os dentes depois de comer.
Ou seja, você tem que escovar os dentes depois da maçã, da banana, da
laranja, das seis refeições e enquanto tiver dentes, passar fio dental,
massagear a gengiva, escovar a língua e bochechar com Plax.
Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para colocar um
equipamento de som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você vai
passar ali várias horas por dia.
Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por
dia, mais as cinco comendo são vinte e uma. Sobram três, desde que você
não pegue trânsito.
As estatísticas comprovam que assistimos três horas de TV por dia.
Menos você, porque todos os dias você vai caminhar ao menos meia hora
(por experiência própria, após quinze minutos dê meia volta e comece a
voltar, ou a meia hora vira uma).
E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem
ser regadas diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar delas
quando eu estiver viajando.
Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para comparar as informações.
Ah! E o sexo! Todos os dias, tomando o cuidado de não se cair na
rotina. Há que ser criativo, inovador para renovar a sedução. Isso leva
tempo – e nem estou falando de sexo tântrico.
Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero que você não tenha um bichinho de estimação.
Na minha conta são 29 horas por dia. A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo!
Por exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e escova os dentes.
Chame os amigos junto com os seus pais.
Beba o vinho, coma a maçã e a banana junto com a sua mulher… na sua cama.
Ainda bem que somos crescidinhos, senão ainda teria um Danoninho e se sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.
Agora tenho que ir.
É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã, tenho que ir ao banheiro. E já que vou, levo um jornal… Tchau!
Viva a vida com bom humor!!!
Luís Fernando Veríssimo
Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar: Duas
vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa,
uma boa bebida e um bom companheirismo.
Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em SP.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de
casamento, “em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela
disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão,
tudo elétrico. Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não
temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente, 100 % dos divórcios começam com o casamento.
Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era “sempre”.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: “O que tem na TV?”
E eu disse: “Poeira”.
Luis Fernando Veríssimo
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Papai Noel às Avessas
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
– Carlos Drummond de Andrade, no livro “Alguma Poesia”. Rio de Janeiro: Editora Pindorama, 1930.
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
– Carlos Drummond de Andrade, no livro “Alguma Poesia”. Rio de Janeiro: Editora Pindorama, 1930.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Lição póstuma
No carro que conduzia à casa da amiga morta, Madalena meditava com melancolia,
conchegando ao busto ainda belo as rendas negras do vestuário de luto improvisado para
esse inesperado transe.
Morrera Valentina, a sua querida companheira da infância!... Extinguira-se de repente, na véspera, essa doce criatura pálida, cuja vida frágil, de sempre enferma e sempre apagada, pouco importava desde muitos anos aos seus mais próximos, nesse centro familiar, rumoroso e alegre, onde se moviam os filhos, as filhas, os genros e as noras da atual finada, em seu inconsciente egoísmo de entes novos, sadios e ativos. E o principal, na aparência, de toda essa gente moça, nascida do seu sangue ou fundida com o seu sangue, Valentina, na realidade, passara gradualmente a ser um zero no lar, de uma sensibilidade doentia que a isolava, sob o terror dos choques da existência comum, e de uma fraqueza de caráter que as contínuas moléstias iam sempre agravando. Tinha a figura emaciada de uma freira. Andava devagar, como arrastando dolorosamente os passos, sem rumo, sem objetivo. E eis enfim que morrera, discretamente, sem ruído, num sopro de ave cansada, que encolhe a cabeça sob a asa e expira docemente, sem incomodar ninguém com estardalhaços de uma agonia aflitiva e prolongada.
Madalena evocava agora esse tristonho tipo de mulher, que conhecera despreocupado na meninice, poeticamente sentimental na adolescência, e enfim abatido nos últimos tempos — e uma sensação como medrosa de arrepio se misturou ao sentimento natural da sua afetuosa saudade.
Quantos anos podia ter Valentina? Só quarenta e seis — a sua própria idade, pois tinham nascido no mesmo ano. E, mais nervosa, Madalena atirou-se para o canto da vitória, vergou o corpo, para enfiar a vista pelo espetáculo das ruas em todo o jubiloso movimento das quatro horas da tarde. Que contraste com o desalento das suas idéias! E que novidade, também, no meio da apatia dos seus dias monótonos, sempre iguais, ao fundo dessa chácara sombria de arvoredos, porejando umidade dos seus caramanchéis apodrecidos pelas chuvas, em que ela esquecia todos os risos da vida por inércia de hábitos, empurrada pouco a pouco, quase sem sentir, para o isolamento próprio dos que terminaram o seu papel no mundo! Um relâmpago fuzilou nas pupilas de Madalena, ao acicate de um pensamento súbito e cruel: como a Valentina!... assim mesmo é que se resvala até cair na morte, sem reagir e sem viver — no verdadeiro sentido desta palavra tão ampla...
E, como febril, debruçou-se mais avidamente, fartou a vista de olhar, de olhar a onda popular espraiada pelas vias, numa ondulação crescente e vertiginosa.
O carro, vindo do Rio Comprido, seguia pela nova e brilhante rua da Carioca, cortada de elétricos rápidos, com a sua alta casaria de aspecto europeu, lojas de montras espelhantes cheias de compradores, grupos remoinhando em certos pontos da calçada larga, junto aos postes de parada dos bondes, um ar de efervescente alegria no azul do céu, na brancura luminosa das fachadas dos prédios, nas vitrinas, nos artigos policromos expostos à venda, nas portas, na multidão formigando apressadamente; em tudo.
Ao pé do mercado das flores, um embaraço qualquer deteve um instante a marcha da vitória, entre a trepidação violenta de todo o gênero de veículos a se cruzarem, e Madalena aspirou, com um frêmito, o aroma vivo das rosas brancas e rubras, dos cravos purpurinos e das angélicas virginais desprendendo o seu hálito de volúpia entre os crisântemos e as dálias sem perfume. Mas já o carro vencia o largo da Carioca, onde desembocava toda uma torrente popular despejada pelas ruas da Uruguaiana e Gonçalves Dias; e, ao reflexo dourado do sol, trazendo nos ouvidos o rumor da vida tumultuosa das ruas e na rotina a visão da graça experta das mulheres que andam às compras, parando em cada montra com um fulgor de apetite no olhar, a saia arregaçada com arte, o pé bem calçado e nervoso — Madalena entrou a rodar sobre o asfalto macio da avenida Beira-Mar, voltando a pensar nessa morta que aguardava na imobilidade suprema o definitivo mergulho na terra fria.
Em pouco, muito pálida sob o negrume do vestido de luto, contemplava Madalena a amiga de infância estendida sobre a eça de ouros lúgubres, entre os candelabros do estilo: e essa face mais lívida do que a cera das tochas acesas, mais reduzida do que um semblante de criança, com os cabelos de leve grisalhos, penteados para o túmulo, e uma expressão de amargura nos lábios finos e roxos — essa face defunta abalou tão violentamente a sua alma, que os soluços a sufocaram como uma crise de nervos. Nem saberia dizer por quem chorava, se pela morta, se por si própria, sentindo como uma trágica parecença nos seus destinos — ambas já tendo cumprido a sua missão na existência e não havendo sabido salvaguardar a nota pessoal, que serve de arma de defesa, instinto de conservação, na segunda e melancólica fase da vida das mulheres.
Acudiam-lhe, de envolta com as lágrimas, trechos de certo romance pungente de Tolstói — uma grande ternura ingênua que tudo dera de si, encontrando ao cabo a ingratidão mais dura, o isolamento, o abandono...
E um pavor subiu-lhe ao cérebro, lembrando as acomodações, as transigências, que ela fora aceitando contra o seu interesse, por amor e por inércia. Apareceu-lhe a chácara sombria, sentiu o vagar dos dias longos, viu-se a errar, cheia de tédio, sem vida própria, entre a animação egoística dos seus mais próximos, como a outra, como essa que ali jazia entre homenagens mentirosas, agora inúteis, de coroas, flores e galões dourados... E uma reação perigosa se fez no seu íntimo. Como a Valentina?... Não, jamais!... Ela queria viver e não morrer. Aquilo era uma lição.
O Matias, genro de Madalena, fumava, ao cair dessa tarde, à porta do vestíbulo, olhando a beleza do ocaso, quando viu caminhar pela grande alameda da chácara, em direção à casa, um vulto de mulher que ele, à primeira vista, não reconheceu.
"Mas é tua mãe!", disse por fim à esposa, virando-se para dentro da sala, como atônito. E no seu tom havia uma tão insólita estranheza, visto como a volta da sogra era perfeitamente natural, que as filhas logo se ergueram e chegaram à porta.
"Mas é mamãe!", repetiram elas, imitando inconscientemente o ar admirado do Matias.
Efetivamente, a silhueta de Madalena parecia mudada nas suas linhas habituais. Ela, que era gorda e indolente, vinha num passo firme e decidido que esmagava as folhas secas do caminho. Tinha arremessado para trás a pelerine de rendas negras, e em seu corpo, ainda bem feito, estava mais moça, mais viva, mais esbelta. No silêncio curioso que a acolheu, pôs-se a contar como fora o enterro da pobre Valentina, insistindo com rancor na insensibilidade ou excessiva resignação de toda a família, que tinha demonstrado à evidência o ínfimo lugar ocupado sob aquele teto pela falecida.
E como, nesse ponto da narrativa, um netinho a importunasse teimosamente, puxando-lhe ora o leque, ora as rendas, Madalena administrou-lhe, com nervosa prontidão, uma pancadinha seca nos dedos. O pequeno chorou: os pais entreolharam-se, espantados; e a mãe acabou observando, para aliviar o despeito:
"Essa d. Valentina, afinal, não passava de uma imprestável..."
Madalena, de ordinário paciente e vagarosa, saltou imediatamente:
"Imprestável? ... Tola é que ela foi..."
Surpresa geral.
Quando Madalena saiu da sala, o Matias dirigiu-se ao cunhado Jorge, também casado, e, de mãos nos bolsos, meneando misteriosamente a cabeça, a esticar um grande beiço desolado, murmurou...
"Transformaram tua mãe, sabes? Aqui há coisa..."
E havia. Era um terror profundo deixado na alma de Madalena pelas impressões da morte da amiga. Era uma reação, entretida pela vontade de fugir a vagos perigos, que chicoteava dia a dia os impulsos da natural e passiva apatia, tentando às vezes retomar os antigos direitos sobre o seu caráter. Nesse momento, então, Madalena corria ao espelho para se examinar; já se via mais magra, com a face lívida e esbatida da amiga que não soubera defender a sua nota pessoal e morrera anulada, como um trapo inútil. E se, a essa hora, a filha ou a nora lhe anunciavam que iam passear, pedindo-lhe para ficar, como dantes, com as crianças, ela, depressa, contrariando o espontâneo assomo de condescendente bondade, respondia que também tinha de sair. E saía de fato, para atestar a sua independência; andava pela cidade, a impregnar-se, como buscando reforço à sua bruxuleante energia, do espetáculo da vida ativa de outras mulheres da sua idade, em que bebia lições. Como a Valentina é que nunca, nunca, jamais!
E certo dia, sob a reprovação mal refreada dos seus, Madalena participou que se ia casar com um senhor Salgado, qüinquagenário ainda robusto, que lhe oferecia a comunhão da simpatia contra os próximos e comuns desalentos da velhice solitária.
Por ocasião desse casamento, enquanto a noiva, madura e satisfeita, jurava fidelidade ao futuro de cabelos grisalhos, bem empertigado na sua casaca solene, o Matias, sucumbido, sussurrava ao ouvido do cunhado Jorge.
"Tudo isto é obra fatal da defunta Valentina...”
E, mais áspero:
"Eu, se ela ressuscitasse, metia-lhe uma bengalada..."
O filho acrescentou com raiva:
"Eu fazia mais: assassinava a peste...”·
E volvendo o olhar torvo para as sedas lilases e farfalhantes da mãe ao pé do altar, concluiu entre dentes:
"Ainda esta manhã ela foi levar uma coroa de amores perfeitos ao túmulo da amiga, agradecendo a lição..."
Madalena, entretanto, pesada e triunfante, ia dizendo ao senhor Salgado, cuja calva reluzia às luzes:
“ Recebo a vós..."
Era o direito à felicidade, proclamado alto!... Era o direito à vida própria!...
Morrera Valentina, a sua querida companheira da infância!... Extinguira-se de repente, na véspera, essa doce criatura pálida, cuja vida frágil, de sempre enferma e sempre apagada, pouco importava desde muitos anos aos seus mais próximos, nesse centro familiar, rumoroso e alegre, onde se moviam os filhos, as filhas, os genros e as noras da atual finada, em seu inconsciente egoísmo de entes novos, sadios e ativos. E o principal, na aparência, de toda essa gente moça, nascida do seu sangue ou fundida com o seu sangue, Valentina, na realidade, passara gradualmente a ser um zero no lar, de uma sensibilidade doentia que a isolava, sob o terror dos choques da existência comum, e de uma fraqueza de caráter que as contínuas moléstias iam sempre agravando. Tinha a figura emaciada de uma freira. Andava devagar, como arrastando dolorosamente os passos, sem rumo, sem objetivo. E eis enfim que morrera, discretamente, sem ruído, num sopro de ave cansada, que encolhe a cabeça sob a asa e expira docemente, sem incomodar ninguém com estardalhaços de uma agonia aflitiva e prolongada.
Madalena evocava agora esse tristonho tipo de mulher, que conhecera despreocupado na meninice, poeticamente sentimental na adolescência, e enfim abatido nos últimos tempos — e uma sensação como medrosa de arrepio se misturou ao sentimento natural da sua afetuosa saudade.
Quantos anos podia ter Valentina? Só quarenta e seis — a sua própria idade, pois tinham nascido no mesmo ano. E, mais nervosa, Madalena atirou-se para o canto da vitória, vergou o corpo, para enfiar a vista pelo espetáculo das ruas em todo o jubiloso movimento das quatro horas da tarde. Que contraste com o desalento das suas idéias! E que novidade, também, no meio da apatia dos seus dias monótonos, sempre iguais, ao fundo dessa chácara sombria de arvoredos, porejando umidade dos seus caramanchéis apodrecidos pelas chuvas, em que ela esquecia todos os risos da vida por inércia de hábitos, empurrada pouco a pouco, quase sem sentir, para o isolamento próprio dos que terminaram o seu papel no mundo! Um relâmpago fuzilou nas pupilas de Madalena, ao acicate de um pensamento súbito e cruel: como a Valentina!... assim mesmo é que se resvala até cair na morte, sem reagir e sem viver — no verdadeiro sentido desta palavra tão ampla...
E, como febril, debruçou-se mais avidamente, fartou a vista de olhar, de olhar a onda popular espraiada pelas vias, numa ondulação crescente e vertiginosa.
O carro, vindo do Rio Comprido, seguia pela nova e brilhante rua da Carioca, cortada de elétricos rápidos, com a sua alta casaria de aspecto europeu, lojas de montras espelhantes cheias de compradores, grupos remoinhando em certos pontos da calçada larga, junto aos postes de parada dos bondes, um ar de efervescente alegria no azul do céu, na brancura luminosa das fachadas dos prédios, nas vitrinas, nos artigos policromos expostos à venda, nas portas, na multidão formigando apressadamente; em tudo.
Ao pé do mercado das flores, um embaraço qualquer deteve um instante a marcha da vitória, entre a trepidação violenta de todo o gênero de veículos a se cruzarem, e Madalena aspirou, com um frêmito, o aroma vivo das rosas brancas e rubras, dos cravos purpurinos e das angélicas virginais desprendendo o seu hálito de volúpia entre os crisântemos e as dálias sem perfume. Mas já o carro vencia o largo da Carioca, onde desembocava toda uma torrente popular despejada pelas ruas da Uruguaiana e Gonçalves Dias; e, ao reflexo dourado do sol, trazendo nos ouvidos o rumor da vida tumultuosa das ruas e na rotina a visão da graça experta das mulheres que andam às compras, parando em cada montra com um fulgor de apetite no olhar, a saia arregaçada com arte, o pé bem calçado e nervoso — Madalena entrou a rodar sobre o asfalto macio da avenida Beira-Mar, voltando a pensar nessa morta que aguardava na imobilidade suprema o definitivo mergulho na terra fria.
Em pouco, muito pálida sob o negrume do vestido de luto, contemplava Madalena a amiga de infância estendida sobre a eça de ouros lúgubres, entre os candelabros do estilo: e essa face mais lívida do que a cera das tochas acesas, mais reduzida do que um semblante de criança, com os cabelos de leve grisalhos, penteados para o túmulo, e uma expressão de amargura nos lábios finos e roxos — essa face defunta abalou tão violentamente a sua alma, que os soluços a sufocaram como uma crise de nervos. Nem saberia dizer por quem chorava, se pela morta, se por si própria, sentindo como uma trágica parecença nos seus destinos — ambas já tendo cumprido a sua missão na existência e não havendo sabido salvaguardar a nota pessoal, que serve de arma de defesa, instinto de conservação, na segunda e melancólica fase da vida das mulheres.
Acudiam-lhe, de envolta com as lágrimas, trechos de certo romance pungente de Tolstói — uma grande ternura ingênua que tudo dera de si, encontrando ao cabo a ingratidão mais dura, o isolamento, o abandono...
E um pavor subiu-lhe ao cérebro, lembrando as acomodações, as transigências, que ela fora aceitando contra o seu interesse, por amor e por inércia. Apareceu-lhe a chácara sombria, sentiu o vagar dos dias longos, viu-se a errar, cheia de tédio, sem vida própria, entre a animação egoística dos seus mais próximos, como a outra, como essa que ali jazia entre homenagens mentirosas, agora inúteis, de coroas, flores e galões dourados... E uma reação perigosa se fez no seu íntimo. Como a Valentina?... Não, jamais!... Ela queria viver e não morrer. Aquilo era uma lição.
O Matias, genro de Madalena, fumava, ao cair dessa tarde, à porta do vestíbulo, olhando a beleza do ocaso, quando viu caminhar pela grande alameda da chácara, em direção à casa, um vulto de mulher que ele, à primeira vista, não reconheceu.
"Mas é tua mãe!", disse por fim à esposa, virando-se para dentro da sala, como atônito. E no seu tom havia uma tão insólita estranheza, visto como a volta da sogra era perfeitamente natural, que as filhas logo se ergueram e chegaram à porta.
"Mas é mamãe!", repetiram elas, imitando inconscientemente o ar admirado do Matias.
Efetivamente, a silhueta de Madalena parecia mudada nas suas linhas habituais. Ela, que era gorda e indolente, vinha num passo firme e decidido que esmagava as folhas secas do caminho. Tinha arremessado para trás a pelerine de rendas negras, e em seu corpo, ainda bem feito, estava mais moça, mais viva, mais esbelta. No silêncio curioso que a acolheu, pôs-se a contar como fora o enterro da pobre Valentina, insistindo com rancor na insensibilidade ou excessiva resignação de toda a família, que tinha demonstrado à evidência o ínfimo lugar ocupado sob aquele teto pela falecida.
E como, nesse ponto da narrativa, um netinho a importunasse teimosamente, puxando-lhe ora o leque, ora as rendas, Madalena administrou-lhe, com nervosa prontidão, uma pancadinha seca nos dedos. O pequeno chorou: os pais entreolharam-se, espantados; e a mãe acabou observando, para aliviar o despeito:
"Essa d. Valentina, afinal, não passava de uma imprestável..."
Madalena, de ordinário paciente e vagarosa, saltou imediatamente:
"Imprestável? ... Tola é que ela foi..."
Surpresa geral.
Quando Madalena saiu da sala, o Matias dirigiu-se ao cunhado Jorge, também casado, e, de mãos nos bolsos, meneando misteriosamente a cabeça, a esticar um grande beiço desolado, murmurou...
"Transformaram tua mãe, sabes? Aqui há coisa..."
E havia. Era um terror profundo deixado na alma de Madalena pelas impressões da morte da amiga. Era uma reação, entretida pela vontade de fugir a vagos perigos, que chicoteava dia a dia os impulsos da natural e passiva apatia, tentando às vezes retomar os antigos direitos sobre o seu caráter. Nesse momento, então, Madalena corria ao espelho para se examinar; já se via mais magra, com a face lívida e esbatida da amiga que não soubera defender a sua nota pessoal e morrera anulada, como um trapo inútil. E se, a essa hora, a filha ou a nora lhe anunciavam que iam passear, pedindo-lhe para ficar, como dantes, com as crianças, ela, depressa, contrariando o espontâneo assomo de condescendente bondade, respondia que também tinha de sair. E saía de fato, para atestar a sua independência; andava pela cidade, a impregnar-se, como buscando reforço à sua bruxuleante energia, do espetáculo da vida ativa de outras mulheres da sua idade, em que bebia lições. Como a Valentina é que nunca, nunca, jamais!
E certo dia, sob a reprovação mal refreada dos seus, Madalena participou que se ia casar com um senhor Salgado, qüinquagenário ainda robusto, que lhe oferecia a comunhão da simpatia contra os próximos e comuns desalentos da velhice solitária.
Por ocasião desse casamento, enquanto a noiva, madura e satisfeita, jurava fidelidade ao futuro de cabelos grisalhos, bem empertigado na sua casaca solene, o Matias, sucumbido, sussurrava ao ouvido do cunhado Jorge.
"Tudo isto é obra fatal da defunta Valentina...”
E, mais áspero:
"Eu, se ela ressuscitasse, metia-lhe uma bengalada..."
O filho acrescentou com raiva:
"Eu fazia mais: assassinava a peste...”·
E volvendo o olhar torvo para as sedas lilases e farfalhantes da mãe ao pé do altar, concluiu entre dentes:
"Ainda esta manhã ela foi levar uma coroa de amores perfeitos ao túmulo da amiga, agradecendo a lição..."
Madalena, entretanto, pesada e triunfante, ia dizendo ao senhor Salgado, cuja calva reluzia às luzes:
“ Recebo a vós..."
Era o direito à felicidade, proclamado alto!... Era o direito à vida própria!...
Emilia Moncorvo (Carmen Dolores)
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