quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O menino que escrevia versos

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:

— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.

Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas  confissões de amor.


Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.

— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.

Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe  espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:

— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:

— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.

— E o que é?

— É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:

— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.

A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.

O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.

— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.

Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo...


Mia Couto

Convite

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério

 
A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.



Lya Luft

No trem de ferro

Vinha sentado gravemente, mudo,
D'olhos baixos, obeso e venerando,
Mãos cruzadas no ventre, ruminando
Velhas rezas ou santo e duro estudo.

Ergue tímido o olhar, triste; contudo,
É paternal e bom; de quando em quando
Ao céu o volve, ao céu que vai passando
Pelas vidraças, empoeirado. Tudo

Nele respira a fé e cheira a igreja.
Por todos os seus poros Deus poreja.
Do seu breviário agora passa as folhas.

Pio varão! para este já começa
O reino do Senhor!... mas sai à pressa
E cai-lhe da batina — um saca-rolhas!



Lúcio Mendonça

quarta-feira, 30 de outubro de 2019


Encontro no Rio

Agora deve ser algo entre 17h e 18h. Na tarde de domingo o largo está silencioso e deserto como um cemitério, o vento frio e moroso se infiltrando pelas árvores. R caminha a passos lentos por uma das calçadas, a pasta tipo executivo pendendo do braço. Vê o carro novo, quatro portas, sem placas, estacionado junto da guia. Quando passa ao lado da porta do passageiro, ela se abre maciamente.

Entra. Atrás do volante, T., com sua cara indecifrável.

"Não te dou a mão", diz ele, "por causa das luvas". "Acho que é falta de educação".

"Mas nem está tão frio assim", rebate R. "Afinal, só estamos no outono."

"Um outono típico de São Paulo. Muito frio pro meu gosto."

"Por que seu carro não tem placas?"

"Pra evitar multas de trânsito. É claro que de vez em quando um guarda me pára, mas é melhor ‘quebrar’ guardas do que multas de trânsito."

Estava explicado. Fizeram um silêncio comprido. Pelo pára-brisa impecável como uma vidraça de banco, R vê a placa no poste da esquina mais próxima. Largo Rio de Janeiro. "Que ironia", pensa ele. "O Rio uma cidade tão bonita, o largo tão sujo.” Põe-se a imaginar por que motivo T. havia marcado o encontro num lugar ermo assim. Seu pensamento é interrompido pela voz tensa do outro:

“E ai? Descobriu alguma coisa?”.

"Bem, deu um bocado de trabalho. Só pra me infiltrar na equipe do ex-governador levei mais de um mês. Depois fiquei uns 45 dias seguindo a equipe dele. Estabeleci um grupo de 11
suspeitos, reduzi pra seis, no fim me limitei a um: o assessor W. (já me acostumei a chamar
assim). Concentrei a atenção nele. Segui por toda parte, grampeei telefones, revirei cestos de lixo em hotéis e restaurantes, interroguei pessoas. Num desses interrogatórios, quase dancei. Dois caras suspeitaram de mim, me seguiram, foi uma sorte ter despistado eles na rua Peixoto Gomide. Se me apanham, acho que tinham me enchido de bala."

"Espero que tanto trabalho e tanto risco tenham valido a pena", supõe T.

"Valeram. W. tem ligações muito escusas. Com bicheiros, donos de casas lotéricas, sites que promovem jogo de azar, gente que manipula concorrências públicas; até lavagem de dinheiro ele faz. Está arrecadando muito, e não é pra menos. Ele precisa levantar fundos para a campanha do chefe. O ex-governador quer ser presidente na próxima eleição. Eu tenho provas. Estão aqui, ó.”

Abre a pasta sobre o colo, pega uma fita de vídeo e entrega ao companheiro. T. revira nas mãos como se fosse uma jóia, talvez fosse mesmo, num certo sentido, e depois enfia no cós da calça, que ele acoberta fechando o paletó por cima. Pergunta se mais alguém sabe da fita.

R. tem orgulho em responder: "Não". Se existe uma cópia em algum lugar. "Não". T. dá um significativo toque no braço do colaborador:

"Fez um bom trabalho. Parabéns".

"Obrigado. Agora só falta você me pagar. No dia que me contratou para a espionagem, disse que eu bancasse as despesas, que depois a gente acertaria. E também tem os honorários... vamos dizer assim. Eu aceitei o acordo porque somos amigos, já trabalhamos juntos, militamos no mesmo partido — se fosse pra outra pessoa eu teria recusado. Somando tudo, dá 18 mil."

T. enfia a mão no bolso interno do paletó. R. imagina que ele vai sacar a carteira ou o talão de cheques. Seus olhos castanhos se arregalam com espanto e terror:

"Pelo amor de Deus, cara! Pra que essa arma?"

Joaquim Nogueira

A terra que nos deram

Depois de caminhar tantas horas sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma raiz de nada, ouve-se o ladrar dos cachorros.

A gente às vezes chegava a pensar, no meio deste caminho sem margens, que nada existiria depois; que não se poderia encontrar nada, ao final desta planura rajada de gretas e de arroios secos. Mas sim, existe algo. Há um povoado. Ouve-se o ladrar dos cachorros e sente-se no ar o cheiro da fumaça, e se saboreia esse perfume das pessoas como se fora uma esperança.

Mas o povoado está ainda muito lá adiante. É o vento que o aproxima.

Estamos caminhando desde o amanhecer. Agorinha é por volta das quatro da tarde. Alguém se vira para o céu, estira os olhos até onde está dependurado o sol e diz:

— São mais ou menos as quatro da tarde.

Esse alguém é Militão. Junto com ele, vamos Faustino, Estevão e eu. Somos quatro. Eu nos conto: dois adiante, outros dois atrás. Olho mais atrás e não vejo ninguém. Então me digo: "Somos quatro". Não faz muito, lá pelas onze, éramos vinte e tantos, mas aos pouquinhos foram se dispersando até não restar nada mais que este punhado que somos nós.

Faustino diz:

— É capaz que chova.

Todos levantamos a cara e miramos uma nuvem negra e pesada que passa por cima de nossas cabeças. E pensamos "É capaz, sim".

Não dizemos o que pensamos. Já faz tempo que se acabou nossa vontade de falar. Acabou-se com o calor. Qualquer um conversaria muito à vontade em outra parte, mas aqui dá trabalho. A gente conversa aqui e as palavras se esquentam na boca com o calor de fora, e ressecam a língua da gente até que acabam com o fôlego. As coisas aqui são assim. Por isso ninguém está para conversas.

Cai uma gota d'água, grande, gorda, fazendo um furo na terra e deixando uma pasta como de uma cusparada. Cai só ela. Esperamos que continuem caindo outras e as buscamos com os olhos. Mas não há mais nenhuma. Não chove. Agora, se a gente olha o céu, vê a nuvem escura correndo lá longe, a toda pressa. O vento que vem do povoado se encosta nela, empurrando-a contra as sombras azuis dos morros. E a gota caída por engano, esta a terra come e desaparece com ela em sua sede.

Quem diabos faria este llano tão grande? Para que serve, hein?

Voltamos a caminhar, havíamos parado para ver chover. Não choveu. Agora tornamos a caminhar. E a mim me ocorre que temos caminhado mais do que temos andado. Ocorre-me isto. Tivesse chovido talvez me ocorressem outras coisas. Afinal eu sei que, desde que eu era garoto, nunca vi chover sobre o llano o que se chama chover.

Não, o llano não é coisa que sirva. Não há coelhos, nem pássaros. Não há nada. A não ser uns quantos arbustos enfezados e uma que outra manchinha de carrapicho com as folhas enroscadas, a não ser isso não há nada.

E por aqui nos vamos nós. Os quatro a pé. Antes andávamos a cavalo e trazíamos uma carabina terçada. Agora não trazemos nem sequer a carabina.

Eu sempre achei que fizeram bem nisso de nos tirar a carabina. Por essas bandas acaba sendo perigoso andar armado. Matam o cara sem avisar, se o vêem todo o tempo com "a 30" amarrada às correias.

Mas os cavalos são outro assunto. Se viéssemos a cavalo já teríamos provado a água verde do rio e passeado nossos estômagos pelas ruas do povoado para que a comida baixasse. Já teríamos feito isso, caso tivéssemos todos aqueles cavalos que tínhamos. Mas também nos tiraram os cavalos junto com a carabina.

Viro-me para todos os lados e contemplo o llano. Tanta e tamanha terra para nada. Os olhos do sujeito escorregam ao não encontrar coisa alguma que os detenha. Só umas quantas lagartixas saem a assomar a cabeça por cima de seus buracos e logo que sentem a chicotada do sol correm a esconder-se na sombrinha de uma pedra. Mas nós, quando tivermos de trabalhar aqui, que faremos para nos refrescar do sol, hein? Por que foi esta crosta dura como cimento que nos deram, para que a semeemos.

Nos disseram:

— Do povoado para cá é de vocês.

Nós perguntamos:

— O Llano?

— Sim, o llano, todo o Llano Grande.

Interrompemos o falador para dizer que o llano não queríamos. Que queríamos o que estava perto do rio. Do rio em diante, pelas várzeas, onde estão essas árvores chamadas casuarinas e a terra boa Não este duro couro de vaca que se chama llano.

Mas não nos deixaram dizer nossas coisas. O delegado não tinha vindo para conversar conosco. Pôs os papéis em nossas mãos e nos disse:

- Não vão se assustar com tanta terra só para vocês.

- É que o llano, senhor delegado.

- São centenas e centenas de alqueires.

- Mas não há água. Nem ao menos para se fazer um bucho tem água.

- E o temporal? Ninguém disse que receberiam terras irrigadas. É só chover ali e o milho se levanta como se fosse esticado.

— Mas, senhor delegado, a terra está esgotada, dura. Não cremos que o arado se enterre nessa como pedreira que é a terra do llano. Seria preciso fazer buracos com o enxadão para semear a semente e nem assim é possível nascer alguma coisa; nem milho nem nada nascerá.

— Transmitam sua reclamação por escrito. E agora vão-se. É o latifúndio que devem atacar e não o governo que lhes dá a terra.

— Espere, senhor delegado. Nós não dissemos nada contra o centro. É tudo contra o llano. A gente nada pode contra o que não pode. Isso é que dissemos. Espere para que a gente explique. Veja, vamos começar por onde íamos...

Mas ele não quis nos ouvir.

Assim nos deram esta terra. E nesta chapa quente querem que semeemos as sementes de algo, para ver se algo brota daqui. Nem urubus. A gente os vê lá longe de quando em quando, muito alto, voando às corridas, tentando sair o mais depressa possível deste branco torrão endurecido, onde nada se move e por onde se caminha como recuando.

Militão diz:

— Esta é a terra que nos deram.

Faustino diz:

— O quê?

Eu não digo nada. Eu penso: "Militão não tem a cabeça no lugar. De certo é o calor que o faz falar assim. O calor que traspassou o chapéu e esquentou-lhe a cabeça. E se não, por que diz o que diz? Que terra nos deram, Militão? Aqui não há nem o tiquinho de que necessitaria o vento para brincar de redemoinho.

Militão torna a dizer:

- Servirá para alguma coisa. Servirá nem que seja para correr éguas. Que éguas? — pergunta-lhe Estevão.

Eu não havia reparado bem em Estevão. Agora que fala, observo-o. Veste um capote que lhe chega ao umbigo, e debaixo do capote estica a cabeça uma coisa parecida com uma galinha.

Sim, é uma galinha o que Estevão leva debaixo do capote. Vê-se os olhos dormidos dela e o bico aberto como se bocejasse. Eu lhe pergunto:

- Escuta, Tevão, de onde surrupiaste essa galinha?

— É a minha! — diz ele.

— Não a trazias antes. Onde a negociaste, hein?

— Não a negociei, é a galinha de meu galinheiro.

— Então a trouxeste como mantimento, não?

— Não, trago para cuidar. Minha casa ficou vazia e sem ninguém que lhe desse de comer, por isso a trouxe. Sempre que saio para longe, carrego-a.

— Escondida aí vai se afogar. É melhor deixá-la ao ar livre.

Ele a acomoda debaixo do braço e lhe sopra o ar quente de sua boca. Logo diz:

— Estamos chegando ao despenhadeiro.

Já não ouço o que Estevão continua dizendo. Pusemo-nos em fila para descer a barranca e ele vai um tanto adiante. Vê-se que agarrou a galinha pelos os pés e a sacode a cada passo, para não lhe bater a cabeça contra as pedras.

À medida que baixamos, a terra se faz boa. O pó sobe de nós como se fosse uma tropilha de mulas o que baixasse por ali, mas gostamos de nos encher de pó. Gostamos. Depois de vir pisando durante onze horas a dureza do llano, nos sentimos muito à vontade envoltos naquela coisa que brinca sobre nós e tem gosto de terra.

Por cima do rio, sobre as copas verde das casuarinas, voam bandos de galinholas verdes. Isso também é de que gostamos.

Agora os latidos dos cachorros se ouvem aqui, junto a nós, e é porque o vento que vem do povoado esbarra no barranco e o enche de todos os seus ruídos.

Estevão voltou a abraçar sua galinha quando nos aproximamos das primeiras casa. Desata-lhe os pés para desinchá-los e logo ele e sua galinha desaparecem detrás de uns cedros.

— Por aqui eu fico — nos diz Estevão.

Nós seguimos adiante, mais para dentro do povoado.

A terra que nos deram está lá em cima.

Juan Rulfo

"Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação de meus desejos afligidos" 

 Cecília Meireles

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Encontro de repentistas do Nordeste acontece em Campina Grande

Encontro de repentistas do Nordeste acontece em Campina Grande 

Desafio 'Estado x Estado' reúne artistas de seis estados nordestinos; evento acontece em novembro.
 
A 13ª edição do desafio “Estado x Estado”, evento que reúne 12 repentistas de seis estados do Nordeste, acontece no dia 9 de novembro, em Campina Grande. O encontro é realizado no Teatro Municipal Severino Cabral, a partir das 20h.

O coordenador do evento, poeta Iponax Vila Nova, explicou que a cidade já foi referência para os cantadores de viola do país entre os anos 1960 e 1970. “A finalidade do desafio é resgatar os grandes eventos, manter viva a cantoria de viola nordestina e revelar novos talentos”, ressaltou.

Participarão do encontro repentistas dos estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte.

Os primeiros quatro colocados da disputa serão premiados com R$ 10 mil, o valor será divido conforme a colocação de cada um deles. Já os outros competidores receberão cachês de participação.

Ingressos antecipados podem ser adquiridos na Banca do Orlando, localizada na Praça da Bandeira, no Centro de Campina Grande. As entradas inteiras custam R$ 50. Idosos e estudantes pagam R$ 25.
 
 Por G1 PB

Lembrança de morrer

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
- Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade - é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas.
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei. que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!

Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores.
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.

Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo.
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta - sonhou - e amou na vida. 

 
Álvares de Azevedo


Humor



segunda-feira, 28 de outubro de 2019



STF: voto de Rosa Weber abre caminho para libertação de Lula

Ao optar por recusar prisões após segunda instância, ministra pode ser decisiva para mudar jurisprudência e beneficiar, assim, o ex-presidente
 
Ao se colocar contra a prisão após condenação em segunda instância, o voto da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber pode ser decisivo para determinar a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na cadeia desde 2018. "A legislação é clara ao defender em que momento o réu deve ser preso, após o trânsito em julgado", afirmou.
Com o posicionamento de Rosa Weber na tarde desta quinta-feira (24), o placar fica 3 a 2 para a manutenção das prisões em segunda instância. Porém, o resultado deve virar, apostam os juristas consultados pelo R7. 
A tendência é que vença, com pelo menos seis votos, a tese favorável à perda da liberdade somente após o término definitivo do processo penal. Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármem Lúcia e Dias Toffoli são os outros possíveis votos pela mudança da atual jurisprudência, afinal já se posicionaram assim em outras oportunidades.
Defendem posicionamento contrário, a favor da perda da liberdade após a segunda instância, Luiz Fux e Celso de Mello, que ainda não discursaram.
Já votaram e foram favoráveis à prisão após sentença na segunda instância os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Contrário, além da ministra, o relator do caso, Marco Aurélio Mello.
Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello apostou em 7 a 4 a favor da alteração – já contando com o voto de Rosa Weber, como realmente ocorreu.
A ministra era a aposta dos defensores da soltura do ex-presidente Lula, condenado em duas instâncias pelo caso do tríplex do Guarujá.
Em sessões de anos anteriores, Rosa Weber havia afirmado ser contrária à prisão provisória, antes do trânsito em julgado, mas, em nome da jurisprudência, votou pelo entendimento atual do STF, que admite a perda da liberdade após a condenação em segunda instância.
Caso o placar atual do julgamento seja revertido, além do ex-presidente Lula, outros 4.894 presos seriam beneficiados com a mudança de interpretação, de acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
 
Marcos Rogério Lopes, do R7

domingo, 27 de outubro de 2019


Frase

Não há ninguém, mesmo sem cultura, que não se torne poeta quando o amor toma conta dele.


Amor


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu


Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

 — O que foi?! gritou vibrando toda

 Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

  — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

 Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

  — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

  — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

 Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

 Acabara-se a vertigem de bondade.

 E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.



Clarice Lispector: tudo sobre a autora e sua obra em "Biografias"

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.

O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI)

Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira ?esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...


Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...


Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas ?infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!

Antônio Frederico de Castro Alves

sábado, 26 de outubro de 2019



Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada…

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio…

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo…

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós! 


David Mourão-Ferreira, in “Infinito Pessoal”
“É preciso escrever com as mãos limpas
o eco da poesia que corre
entre as margens de erro da vida;
e emendar o céu…
com o olhar simples
de quem apanha as estrelas distraídas
e voa, para que se abracem,
encurtando a distância
que, sob qualquer circunstância,
cabe inteira num poema.
Sem fragmentos, respiração suspensa
e uma história imóvel
entre os gracejos de um copo de vinho
que aviva veloz, a memória da tua voz
doce e calma a léguas de mim…
É preciso corrigir a lonjura sempre que chove
e o dilúvio da cidade solitária se abate sobre os nossos corações.
… escorrem as emoções, ao sul
desaguando no mar azul
que te traz…
e só termina nos meus olhos.”



Rita Nascimento

Dos milagres

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!


Mário Quintana

Alguma coisa deu profundamente errado com a democracia de um país onde dinheiro dos impostos, pagos por você, é usado na construção de túneis para permitir que parlamentares e ministros do STF saiam escondidos do seu local de trabalho. Como um negócio desses pode dar certo?

 J.R.Guzzo

É preciso livrar o Brasil da burocracia

De inúmeros pilares e sub-itens do Índice de Competitividade Global, recentemente publicado pelo Fórum Econômico Global, em que o Brasil tem desempenho medíocre, existe um no qual o país amarga, já há alguns anos, o último lugar entre todas as nações pesquisadas: o chamado “peso da regulamentação governamental”. Os entrevistados são questionados sobre o quão trabalhoso é para as empresas arcar com todas as exigências da administração pública, como permissões e alvarás, regulamentações e relatórios. Daí extrai-se uma nota que vai de 1 (extremamente pesado) a 7 (nada pesado), que por sua vez resulta em um índice de zero a 100, em que, quanto maior o indicador, menos burocrático é o país.
Ao longo da última década, o Brasil praticamente não saiu do lugar. Em todas as edições do ranking publicadas neste período, o país sempre ocupou a última ou penúltima colocação, e apenas em 2012 e 2013 conseguiu uma nota 2; depois disso, a avaliação foi caindo gradativamente até chegar ao ponto mais baixo (1,6) no relatório do ano passado, subindo para 1,7 no índice deste ano. Por mais que a burocracia pareça ser uma praga mundial – mesmo em Cingapura, líder do ranking, a nota ficou em 5,5 de 7, ou 74,4 pontos no escore de zero a 100 –, não há justificativa razoável para que o Brasil seja um paraíso para os burocratas.
Nossos negócios não poderão realizar todo o seu potencial enquanto estiverem amarrados pela burocracia
E, quando falamos em “justificativa razoável”, é porque sabemos que há outros motivos mais ou menos inconfessáveis. Eles vão da mentalidade que trata o empreendedor como inescrupuloso até prova em contrário, e por isso é preciso impor a ele todo tipo de obrigação para se ter certeza de que não sairá da linha, até a conhecida ideia de “criar dificuldades para vender facilidades”, que está na origem de inúmeros escândalos que envolvem estruturas de fiscalização Brasil afora. A quantidade de regras a cumprir é tão absurda que sempre haverá algum alvará faltando, algum item fora do padrão, algum prazo que não foi cumprido – e, em muitos casos, alguém disposto a fazer vista grossa em troca de sabe-se lá que favores. Enquanto isso, o empreendedor é obrigado a realizar um esforço hercúleo para vencer a burocracia, gastando energia, tempo e pessoal que poderiam ser empregados na melhoria dos produtos ou serviços oferecidos. Não à toa existe relação direta entre burocracia e competitividade.
Felizmente, atacar esse emaranhado burocrático tem sido uma das prioridades da equipe econômica do governo Bolsonaro, capitaneada por Paulo Guedes. Um passo importantíssimo foi dado com a edição da MP da Liberdade Econômica, que, com a aprovação no Congresso, tornou-se Lei da Liberdade Econômica. Ela retirou uma série de exigências desproporcionais que eram impostas a negócios considerados de “baixo risco”, um critério que envolve, por exemplo, o tipo de atividade da empresa e as instalações físicas necessárias para seu funcionamento. Ao presumir a boa fé do empreendedor, citada explicitamente nos três primeiros artigos da Lei da Liberdade Econômica, o governo ataca exatamente o aspecto cultural que embasava a atuação dos burocratas, que presumiam a má intenção para, então, impor todo tipo de obrigação ao empresário.
Embora sejam tratadas em itens diferentes no ranking de competitividade global, a estrutura tributária e as regras trabalhistas também podem ser incluídas no peso que a burocracia tem sobre o empreendedor – outro ranking, o Doing Business, do Banco Mundial, coloca o Brasil em um incontestável último lugar quando se trata do tempo gasto para cumprir todas as obrigações com o fisco. Também estas áreas estão na mira dos poderes Executivo e Legislativo: o governo quer aprofundar o trabalho iniciado com a reforma trabalhista de Michel Temer, aprovada em 2017, e o Congresso Nacional analisa duas propostas de reforma tributária, enquanto o Planalto hesita em enviar o próprio projeto. Este esforço é tão fundamental para o Brasil quanto as grandes reformas macroeconômicas. Nossos negócios não poderão realizar todo o seu potencial enquanto estiverem amarrados pela burocracia, enquanto patrões e funcionários precisarem gastar tempo e energia cumprindo exigências absurdas quando poderiam estar produzindo mais e melhor.
 
Gazeta do Povo 

sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Para quem a gente escreve?

É uma das perguntas que nos fazem nas entrevistas: “Para quem o senhor escreve?...”
Em geral eu corto o nó górdio dizendo que escrevo para mim mesmo – falo de coisas que me interessam, eu mesmo faço críticas e levanto questões, eu mesmo procuro dar respostas e expor argumentos. E me dou por sortudo quando vejo que tem alguém que acaba lendo e gostando.
Quando a gente está publicando num jornal ou revista de grande circulação, ou para um público muito distante, sempre surge uma dúvida. Deve-se explicar certos conceitos ou não? Deve-se explicar quem foi Fulano, quem foi Sicrano?  Ou basta dizer o nome? Será que os leitores vão saber?
Se eu escrevo um artigo para um público em geral posso dizer algo tipo: “O romance de hoje talvez não precise do excesso de realismo de Flaubert, e aparenta se contentar com menos”.
Imagino que a maioria dos leitores tenha pelo menos uma idéia aproximada de que “Flaubert” é Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, grande romancista francês do século 19.
Mas com um nome menos famoso convém dar pelo menos uma pista: “Por outro lado, ninguém precisa fazer como Wallace e dedicar duas páginas inteiras à descrição de um ambiente”.
Dizer “Wallace” não bastaria, se estou de fato me referindo a David Foster Wallace, o autor de Graça Infinita; hoje, com Google e tudo o mais, a gente pode citar o nome completo e presumir que o leitor realmente interessado pode dar uma busca e satisfazer sua curiosidade, desde que a pista seja suficiente.
Já me reclamaram por escrever referências tipo “o filósofo alemão Nietzsche”, com o argumento de que “todo mundo sabe que Nietzsche foi um filósofo alemão, e explicar essas coisas é paternalismo”. Não acho. Pelo menos no meu público leitor, tem muita gente que não sabe, o que não é nenhum demérito. Eu não sei quem são metade dos autores que meus amigos citam, e não me acho burro por isto.


(Raymond Queneau)

O escritor francês Raymond Queneau pegou a certa altura da vida uma tarefa assombrosa, a de coordenar a Encyclopédie de la Pléiade, uma coleção gigantesca de informações coletadas sobre todas as áreas, ampliando em muito a respeitável tradição de Diderot e d’Alembert, os enciclopedistas do século 18.
Não sei quantos volumes acabaram saindo. O único que tenho é o volume 1 da Histoire des Littératures, que inclui as “Littératures anciennes orientales e orales”. São mais de 40 colaboradores, num volume de 1.700 páginas, fazendo resumos de literaturas nacionais que vão desde a egípcia à bérbere, desde a coreana à bizantina.
A quem se destinavam esses livros?
Num folheto explicativo lançado em 1956 pela Gallimard (editora da Enciclopédia), ele explica ao leitor alguns problemas com que se defrontaram:
Analisemos um por um estes obstáculos. Primeiro, as palavras. Pode ser que um leitor se incomode caso encontre palavras como periélio, anastomose, estrofóide; ou, pelo menos, esta é uma suposição plausível por parte do editor. Por sua vez, o mesmo leitor, o leitor real, reconhecerá de boa vontade que ignora o significado delas. Por outro lado, pode-se supor que ele sabe o significado de paralelepípedo, antibiótico ou radar, mesmo que o conhecimento real que se esconde por trás de cada uma dessas palavras seja com frequência bastante pobre. Onde fica, então, a linha divisória? É muito difícil de determinar. Supõe-se que alguém saiba o significado de hexágono, elétron ou célula; no caso de eclipsóide, mésotron ou gene, já não é tão óbvio; e com símplex, spin ou neotenia já nos afastamos bastante da linguagem comum e corrente.
Por essas e outras não custa nada dar, no correr do texto, pelo menos uma idéia do que a palavra significa naquele momento, até porque pode ser um neologismo, uma palavra de invenção recente, com que o leitor não se deparou ainda.
Uma coisa é falar de ficção científica num fanzine que só é lido pelos aficionados, e outra é republicar o mesmo artigo numa revista de circulação nacional. Claro que é preciso revisar o que foi escrito, e contextualizar muitas informações.
O problema é que muitas vezes qualquer autor se sente numa zona de conforto excessiva, se sente muito à vontade diante do seu público-alvo e acha que não precisa explicar coisa nenhuma.
Um exemplo disso, dessa camaradagem implícita que acaba irritando um leitor casual, eu acabei de ver num artigo de Jonathan Lethem na revista Granta (#86, Summer 2004), “Two or Three Things I Dunno About Cassavetes”.


(John Cassavetes)
Lethem é um escritor que admiro bastante, escreve FC, escreve romance fantástico e “mainstream”. Neste texto, ele analisa o cinema de John Cassavetes, que é mais conhecido como ator (O Bebê de Rosemary, Os Doze Condenados, etc.), mas foi um dos mais importantes diretores do cinema independente dos EUA.
Lethem começa seu artigo descrevendo um casal que entra num cinema-poeira no centro de uma cidade, numa sessão da tarde, num dia de meio da semana, com o cinema quase vazio. O casal senta e assiste o filme. E no segundo parágrafo, Lethem começa a comentar:
Eles acabam de ver um filme de John Cassavetes. Eu diria que não importa muito saber que filme foi, mas eu sei que vocês sabem que não me refiro a um dos filmes ruins dele, um daqueles que a gente evita falar a respeito, aqueles bem do começo ou bem do final  da carreira; ou, isso mesmo, nem sequer aquele que não é grande coisa, aquele que ele escreveu e dirigiu, estrelando sua maior atriz, sua esposa, mas que ele não levou muito a sério, e por falar nisso você também não. O homem e a mulher acabaram de assistir um dos grandes. Você sabe a que filmes eu me refiro, aqueles que mudam sua vida. Um que você jamais esquecerá onde estava quando o viu pela primeira vez ou como foi a sensação de vê-lo, um que fez você ficar pensando “Mas o que diabo foi isto? Preciso ver isto novamente. Quem é esse tal de Cassavetes?” Não, eles assistiram aquele de que tanto tinham ouvido falar – aquele sobre a família, os amigos, os irmãos, os atores, aquele sobre o homem e a mulher. (Trad. BT)
Pois é. Não acho que Lethem deveria ter escrito diferente, o texto é dele; não acho que deveria ter enchido seu parágrafo com asteriscozinhos explicatórios. Ele deve ter do público da Granta uma noção mais veraz do que a minha. Mas esse trecho é um exemplo muito bom de quanto alguém escreve para seus coleguinhas, aquele texto de fã para fã, cheio de piscadelas cúmplices, onde se diz só meias palavras porque do outro lado da folha de papel só tem bons entendedores.
Para quem escrevemos?  Eu diria que cada texto tem um público em mente, e é isso mesmo, tem que ser assim. O que não impede que de vez em quando a gente se equivoque, como quem vai de bermuda e havaianas para um jantar da diretoria da empresa, ou de black-tie para uma arquibancada de futebol.

(Jonathan Lethem)

Fonte
Mundo Fantasmo