Outro dia publiquei aqui no blog um poema (Não te amo mais) cuja autoria é atribuída a Clarice Lispector. A nossa cuidadosa amiga Marisa Bello, atenta à questão, suscitou o artigo da Betty Vidigal em que traz dúvida sobre a suposta autoria desse poema.
Abaixo, a íntegra do artigo:
_____
Trata-se de uma brincadeira engenhosa,
embora mal redigida: um “poema” – assim
o chamam os remetentes – cujo sentido se
altera drasticamente quando lido de baixo
para cima.
A rigor, não se pode dizer que seja um
poema. É apenas um texto dividido em
algumas linhas. Mas, por assim estar dividido
e por falar sobre amor, acreditam alguns que
se trate de um “poema”.
Se esse fosse o único equívoco, seria até
divertido. Apesar dos erros de sintaxe, o
texto tem o mérito de ser surpreendente.
Quem o envia, no entanto, não se contenta
com surpreender. A piadinha chega
acompanhada de comentários sobre sua “alta
qualidade literária” . E pior: garantem, hoje,
que foi Clarice Lispector quem a perpetrou.
Essa de atribui-la a Clarice é novidade.
Na primeira vez em que recebi esse e-mail,
há uns quatro anos, a autoria vinha
imputada a “autor desconhecido”. Como
achei engraçado e original, consertei as
frases, deixando-as mais corretas e mais
coloquiais, e passei o brinquedo adiante.
Ao longo dos anos seguintes, ele voltou
a aparecer algumas vezes em minha caixa
de entrada – sem as correções que fiz, o
que mostra que essas alterações não
“pegaram”. E, de dois anos para cá, tem
circulado, sabe-se lá por que, como sendo
de autoria de Clarice.
Agora os enviadores de e-mails não falam
mais das características histriônicas daqueles
“versos”. Em vez disso, tecem elogios ao
talento literário de quem os escreveu e à
beleza da língua portuguesa, que permite
tais malabarismos – como se eles não fossem
possíveis em qualquer língua.
Aí vai o poemeto objeto destes
comentários. Não separo aqui os versos por
barras, porque a brincadeira consiste em lê-
los do fim para o começo, depois que se
chega ao fim.
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
Pronto. Leram? Agora leiam os “versos”
em ordem inversa, de baixo para cima. O
sentido das frases se altera; o que soava
como uma “declaração de desamor” torna-se
uma confissão de amor eterno. Divertido,
mas se Clarice fosse brincar disto não teria
repetido, deselegante e desnecessariamente,
a palavra “jamais”. Nem juntaria aqueles dois
gerúndios, “mentindo dizendo”. Há muitas
formas de contornar isso.
1
Escarafunchei a internet com a
profundidade que permitem os mecanismos
de busca. Há treze sites com versões deste
texto em espanhol. Em inglês, apenas
quatro, sendo que dois deles apresentam
também o “original” em português.
Lamento dizer que nesses dois sites (da
UCLA2
), Clarice Lispector era citada como
a autora. Em português, há 444 referências,
a maior parte delas em endereços no Brasil.
Apenas 163 não o atribuem a Clarice. (No
site http://geocities.yahoo.com.br/
marjori_rj/outros_poetas.html , por
exemplo, quem aparece como autor é Carlos
&
#
Betty Vidigal
“Drummont” de Andrade.)
Na última vez em que o recebi – no dia
16 de abril deste ano – o título do e-mail
era “poema genial”. À guisa de apresentação,
o remetente dizia: “De facto, a língua de
Camões é única. Leia até o fim.” A grafia da
palavra “facto” atesta a origem portuguesa
dessa remessa. Mas, como portugueses não
usam os gerúndios da forma como nós
usamos, e dados os gerúndios presentes no
texto, certamente o português que o enviou
recebeu-o de algum(a) brasileiro(a).
Apesar do pequeno número de “sítios” em
espanhol, inclino-me a acreditar que o texto
deve ter sido escrito originalmente nessa
língua. Todos esses sites apresentam-no
como “un chiste”3
– que de fato é – e
nenhum dá crédito de autoria a ninguém.
Pena: o verdadeiro autor do “chiste”, ainda
que não se trate de alta literatura, merece
reconhecimento por sua inventividade. Em
espanhol, as frases soam coloquiais, não
parecem retorcidas, como em português. São
coisas que se poderia dizer com
naturalidade.
O título passa a ser a frase inicial “No te
amo más”.4
Prossegue com “Mentiría
diciendo que / todavía te quiero como
siempre te quise.”. (Ah! Viram? Aqueles dois
gerúndios seguidos desaparecem, em
espanhol...!) E a penúltima frase é “Lo
siento, pero debo decir la verdad”. Esta
expressão, “Lo siento, pero”, em espanhol,
é muito razoável. Em português, dizemos
“desculpe, mas..” ou “sinto muito, mas...”.
Em questões sérias, talvez digamos “perdoeme”.
Este “sinto”, assim, sozinho,
desacompanhado do “muito”, tem cara de
ser tradução do espanhol.
Clarice nunca publicou poemas. O site do
Jornal de Poesia, do Soares Feitosa, traz uma
justificativa para os que circulam pela net.
Com o título de “Poemas que (não) são de
Clarice”, vem a explicação do Feitosa: “Os
poemas desta página são resultado do
arranjo em versos, feito pelo padre Antônio
Damázio ..., de textos em prosa da
extraordinária escritora Clarice Lispector.
Nesta saudável mania de todo-mundocopiar-todo-mundo-sem-citar-a-fonte,
tem
umas “pages” por aí publicando estes textos
sem lhes indicar a parceria do padre e como
se fossem poesia originariamente feita por
Clarice. É bom que se diga que Clarice, apesar
de escrever de forma não versificada, era
poeta verdadeira, pois como diz Benedicto
Ferri de Barros não basta ao texto estar
quebrado em linhas para ser poesia. Clarice
fazia poesia sem quebrar as linhas; esta é a
homenagem que lhe presta o Jornal de
Poesia, quando incentivei o padre Damázio
a levar o projeto Clarice adiante. Uma pena
que o padre sumiu, não sei onde lhe andam
as alpercatas, porque seria muito válido
pedir a ele que indicasse a origem dos textos
que arranjou de forma tão feliz.”
5
Pessoalmente, sou contra. Qualquer
pessoa pode dividir em versos a prosa
poética de Clarice: os versos estão implícitos
no ritmo do texto. Um exemplo: “O relógio
acordou em tin-dlem sem poeira. O silêncio
arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o
que? roupa-roupa-roupa. Não não.”6
Ou este
outro trecho do mesmo romance: “– Palavras
muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma
brilhante e úmida debatendo-se dentro de
mim. Mas onde está o que quero dizer, onde
está o que devo dizer? Inspirai-me, eu tenho
quase tudo; eu tenho o contorno à espera
da essência; é isso?”
7
Claro que este tipo de conteúdo não
interessa ao enviador-padrão de e-mails.
Esse quer “lições de vida” ou algo que faça
rir.
Sim: circula também na web uma “lição
de vida” com a assinatura de Clarice. “Há
momentos na vida em que sentimos tanto a
falta de alguém que o que mais queremos é
tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-
la. Sonhe com aquilo que você quiser. Vá
para onde que ir. Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida e nela
só temos uma chance de fazer aquilo que
queremos. Tenha felicidade bastante para
fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana. E esperança
suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais
felizes não têm as melhores coisas. Elas
sabem fazer o melhor das oportunidades que
aparecem em seus caminhos. A felicidade
aparece para aqueles que se machucam. Para
aqueles que buscam e tentam sempre. E para
aqueles que reconhecem a importância das
pessoas que passam por suas vidas. O futuro
mais brilhante é baseado num passado
intensamente vivido. Você só terá sucesso
na vida quando perdoar os erros e as
decepções do passado. A vida é curta, mas
as emoções que podemos deixar, duram uma
eternidade. A vida não é de se brincar porque
um belo dia se morre.”
Encontram-se estas frases,
separadamente, em alguns sites de
“pensamentos”. Todas juntas, aparecem em
1620 sites, associadas ao nome de Clarice.
Mas – sempre a mesma questão: como
provar que alguém não escreveu algo? No
caso de autores mortos, somente a
intimidade com seu estilo pode levar à
percepção de que algo está sendo impingido
ao público, conspurcando a obra do escritor.
Toda vez que recebo isso, faço questão de
avisar ao remetente que esse amontoado de
sabedoria popular não pode ser de Clarice,
não tem nada a ver com o que ela escrevia.
Numa dessas vezes, o amigo que me
mandou o e-mail resolveu pôr minhas
ressalvas à prova. Mandou o texto,
acompanhado de meu e-mail, ao Assis Brasil,
que é seu primo. Eis a resposta que recebeu:
“Olha, primo: se este texto é de Clarice, então
eu sou o imperador da China. Jamais a Clarice
iria escrever essa sucessão de bobagens,
trivialidades e lugares-comuns. Ela era uma
grande escritora.”
Pois é. Quem conhece, sabe que não pode
ser dela.
O difícil é – continua sendo – convencer
os outros.
Não duvido que a frase final seja de Clarice
Lispector. Talvez seja. Talvez o final seja uma
citação e, como soe acontecer, o pobre autor
citado torna-se uma vítima do texto inteiro.
“A vida não é de se brincar porque um belo
dia se morre” tem um tom lispectoriano.
O resto, não.
BETTY VIDIGAL é poeta e internauta
inveterada.
1
Sugiro uma; há dezenas de possibilidades: “
Não te amo mais. / Eu estaria mentindo se dissesse
que / Ainda te quero como sempre quis. / Tenho
certeza de que / Nada foi em vão. / Hoje sei que /
Você nada significa para mim. / Não poderia dizer
que / Ainda sinto aquele imenso amor. / Já te
esqueci! / E jamais direi que / Eu te amo! / Sinto
muito, mas tenho que dizer-te a verdade: / É tarde
demais...”. Funciona da mesma forma: se os versos
são lidos em ordem inversa, o sentido também se
inverte.
2
Universidade da Califórnia – Los Angeles.
3
Uma piada.
4
Em português, o título tornou-se, com o passar
dos anos, “Poema Genial”.
5
http://www.secrel.com.br/jpoesia/cli.html.
6 Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector,
pg.9. Editora A Noite , Rio de Janeiro, 1942.
7
Idem, pg. 72.