Já faz parte da crença popular culpar o fígado
pelos sintomas de embriaguez ou ressaca, quando na verdade isso se deve mais aos
efeitos do álcool sobre o cérebro e o restante do aparelho digestivo
"A ressaca pode acontecer sem que o fígado esteja
agredido. Trata-se de um mal-estar causado pelo efeito anticolinérgico (inibe a
produção de acetilcolina, substância química que atua como neurotransmissor) do
álcool associado à desidratação. Um produto do metabolismo do álcool gerado no
fígado, o acetaldeido (que é mais tóxico que o próprio álcool) explica em parte
esses sintomas", afirma o hepatologista Raymundo Paraná, professor da
Universidade Federal da Bahia.
A cirurgiã Liliana Ducatti, da equipe de
transplante de fígado e órgãos do aparelho digestivo do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), afirma que o excesso
de metabólitos do álcool causa, entre outras coisas, a desidratação.
"Por isso é importante tomar bastante água. Se
sabe que terá uma festa e vai beber no dia seguinte, tome isotônico um dia
antes. Ou, na hora, para cada taça de álcool, tome duas de água", ensina a
hepatologista Mônica Viana, do Hospital do Servidor Público de São Paulo e do
instituto que leva seu nome.
Da mesma forma, medicamentos à base de alcachofra
fazem bem, mas não porque irão atuar no fígado, como se acredita, mas porque
facilitam a digestão: "Alcachofra diminui o colesterol, mas afirmar que os
alimentos amargos ajudam o fígado não tem nenhum fundamento", completa
Viana.
O maior
O fígado não só é a maior glândula como também o
segundo maior órgão do corpo humano, perdendo apenas para a pele. Está
localizado sob o diafragma e pesa entre 1,3 kg a 1,5 kg em um homem adulto. Já
nas mulheres seu peso é um pouco menor e, nos pequenos, é proporcionalmente
maior, já que constitui 1/20 do peso total de um recém-nascido. É um órgão tão
grande em crianças, na primeira infância, que pode ser sentido abaixo da margem
inferior das costelas.
Ele funciona tanto como glândula exócrina,
liberando secreções num sistema de canais que se abrem numa superfície externa,
como glândula endócrina, já que também libera substâncias no sangue ou nos vasos
linfáticos. Além disso, realiza aproximadamente 220 funções diferentes, todas
interligadas e correlacionadas.
Sua atividade principal e mais conhecida é a
formação e excreção da bile - fluido que se armazena na vesícula biliar e atua
na digestão de gorduras e na absorção de substâncias nutritivas da dieta. As
células hepáticas produzem em torno de 1,5 litro de bile por dia.
O fígado também pode ser considerado um gerador
de energia para o corpo. Isso porque produz calor, participando da regulação do
volume sanguíneo, proporciona uma ação antitóxica importante, processando e
eliminando os elementos nocivos de bebidas alcoólicas e gorduras, entre outros.
Além de tudo disso, tem um papel vital no processo de absorção de alimentos. Não
conseguiríamos viver sem este órgão, responsável por tantas funções.
Cuidado com chás
Alguns itens que parecem inofensivos, se
consumidos com frequência, podem causar um tremendo prejuízo ao fígado. Os chás
com supostos efeitos terapêuticos, por exemplo. "A maioria deles não é estudada
em ensaios de fase três (que comprovam os efeitos). Sem esses estudos não
podemos conhecer a sua eficácia nem a sua segurança. Além disso, não há
padronização de dose, nem mesmo controle sobre as sustâncias que acompanham o
princípio ativo de uma planta. A ideia de que o natural faz bem é completamente
falsa e obedece a um interesse de mercado", afirma Raymundo Paraná.
Segundo o médico, alguns chás que podem causar
danos ao fígado são picão preto (carrapicho), sacaca, cáscara-sagrada,
espinheira-santa, confrei, erva-mãe-boa, sene e poejo. "Melhor optar por chá de
erva-cidreira ou erva-doce. Já tive um paciente que ficou na UTI por causa de
excesso de chá verde. Melhor ainda é tomar água", alerta Viana.
Dieta desintoxicante
Quando o assunto é a famosa dieta desintoxicante,
todos os profissionais são totalmente contra. "Esta é uma situação absurda de
ataque à boa fé das pessoas, são modismos para ganhar dinheiro às custas da
ingenuidade alheia. Infelizmente, este tipo de prática está cada vez mais comum
no Brasil", afirma Paraná.
"Toda dieta bem equilibrada faz bem para o fígado
como para todo o organismo, mas não existe alimento milagroso que faça
desintoxicação", afirma Ducatti.
Viana recomenda cuidado com este tema: "Isso
porque vive surgindo alguma maluquice 'do momento'. O chá verde que citei é um
exemplo. Nada melhor para desintoxicar que água!".
O fígado e a melancolia
Mais uma crença popular, e não só no Brasil: a de
que a bile produzida pelo fígado é a origem da depressão e da melancolia. Aliás,
o termo melancolia nasceu da união de duas palavras gregas: melanós (negro) e
cholé (bile).
"Na Grécia antiga se tinha esta crença. Como a
bile é amarga, acreditava-se que o fígado purgava o amargor da vida, portanto
seria responsável pelo humor. Hoje sabemos que não é nada disso", diz Paraná.
Ducatti completa, afirmando que as alterações do nosso humor estão ligadas ao
funcionamento do cérebro e seus neurotransmissores.
Já Viana admite que vê diferença nos pacientes:
"Cuidado com a mágoa! Quanto mais a pessoa estiver magoada, mais lesionado
ficará seu fígado, mas isso não tem base científica nenhuma. É algo que eu noto
no consultório!"
Gordura e açúcar
A transformação de glicose em glicogênio, forma
de armazenamento de açúcares nas células animais, e seu armazenamento, se dá nas
células hepáticas. Ligada a este processo, há a regulação e a organização de
proteínas e gorduras em estruturas químicas utilizáveis pelo organismo da
concentração dos aminoácidos no sangue, que resulta na conversão de glicose que
é utilizada pelo organismo no seu metabolismo.
Nesse processo, o subproduto resulta em ureia
(substância presente em nosso organismo que age na função do sistema renal), que
é eliminada pelo rim. Em paralelo, existe a elaboração da albumina (proteína
presente no plasma sanguíneo) e do fibrinogênio (proteína específica do sangue e
representa um papel fundamental na coagulação).
E os alimentos gordurosos seriam muito
prejudiciais ao fígado? Para Raymundo Paraná, a gordura faz mal ao organismo
como um todo, mas não especificamente ao fígado. Ducatti alerta que esse tipo de
alimentação pode gerar uma inflamação, a chamada esteatose hepática.
"Pior ainda é o açúcar. Eu sempre falo para meus
pacientes que doce é pior que picanha. A pessoa está triste? Como doce! Brigou
com o namorado? Come chocolate. Falam que carne faz mal, mas se comer fraldinha
ou filé mignon, sem gordura e com parcimônia, não tem problema", diz Viana.
E não é para pensar que gordura no fígado é
privilégio apenas de quem está acima do peso. Magros também podem ter o fígado
recheado de gordura. Paraná conta que há pacientes magros com dislipidemia
(presença de níveis elevados ou anormais de lipídios e/ou lipoproteínas no
sangue) ou resistência à insulina de origem genética e que podem ter gordura no
fígado de forma semelhante a dos obesos.
"Sim, pessoas magras podem ter gordura no fígado,
especialmente diabéticos que nem sabem que têm a doença", diz Viana. Ela frisa
que a pessoa precisa fazer o exame para verificar o colesterol e triglicérides
com 12 horas de jejum, mas que muitos laboratórios deixam o paciente esperando e
horas a mais causam diagnósticos errados.
Regeneração
O fígado é um órgão realmente especial e entre
suas diferenças em relação aos demais está sua capacidade de se regenerar. É o
único órgão de mamíferos capaz de se regenerar. No caso de uma cirurgia ou mesmo
da doação de parte dele, em um transplante, por exemplo.
O homem já conhece essa fascinante capacidade
desde a antiguidade. A mitologia grega, por exemplo, conta que o titã Prometeu,
ao criar o homem, lhes deu o fogo, que era algo exclusivo dos deuses, tornando-o
superior a todos animais. Como castigo, foi condenado por Zeus, o deus do
Olimpo, a passar a eternidade acorrentado a uma rocha, sofrendo o ataque de uma
águia que lhe devorava o fígado todos os dias. Um castigo que já trazia a ideia
de que o órgão pode se regenerar.
Segundo a cirurgiã Liliana Ducatti, o fígado se
regenera e chega ao tamanho habitual, mas cresce em massa, não exatamente como
era. Ela exemplifica: se retiramos o lobo direito, extraímos muitas vezes a veia
e a artéria direitas. Este fígado que ficou com lobo esquerdo vai crescer até
ficar com o tamanho habitual, mas não irá criar um "novo lobo direito". Também
não terá mais a veia e a artéria direitas, que foram retiradas; será um fígado
de tamanho tradicional, mas somente com os vasos esquerdos. "Porém, se o peso do
fígado que permaneceu for adequado à pessoa, o órgão realizará suas funções
normalmente".
O coordenador de transplantes do Hospital
Israelita Albert Einstein, Marcelo Bruno de Rezende, conta que tudo depende da
compatibilidade do peso e do tipo sanguíneo. "Podemos dividir um fígado adulto e
fazer dois transplantes. Ou transplantar um fígado infantil num adulto. O órgão
tem de pesar 1% do peso da pessoa. Assim, um adulto de 70 quilos precisará de um
fígado de no mínimo 700 gramas. Hoje temos 15 doares para cada milhão de
habitantes. A meta é chegar a 20, pois muitos ainda morrem na fila".
"Não me canso de falar que o Brasil é o país que
faz o melhor transplante de fígado do mundo. O problema é a espera. São dois a
três anos na fila. O melhor é que o transplante seja feito de um órgão que venha
de um doador cadáver e que não seja um transplante intervivos, pois o doador
nunca sabe o que pode ocorrer no futuro. Precisamos aumentar a campanha de
doação de órgãos", ensina a hepatologista Monica Viana, dizendo que o ideal é
avisar aos familiares que se é um doador.
Fonte: UOL