quarta-feira, 10 de maio de 2017

“Este” ou “esse”? Tanto faz!

Eu fico sempre muito surpreso quando topo com certos fenômenos de comportamento que, sem dúvida, devem fazer a festa dos psicólogos. Um desses fenômenos é o que se resume na conhecida expressão “ser mais realista do que o rei”.

Quem estuda os comportamentos linguísticos como fenômenos da psicologia social mais ampla também topa frequentemente com essa atitude: a de querer preservar a ferro e fogo determinados usos da língua que até mesmo os gramáticos e dicionaristas mais conservadores já consideram causa perdida.

Gramáticos e dicionaristas gozam, na nossa cultura, de uma certa reverência quase religiosa, são vistos como os conhecedores máximos da “língua certa”, é a eles que se deve recorrer no momento de resolver uma dúvida, de aprender o que é e o que não é permitido falar ou escrever.

Muita gente chega mesmo a acreditar que determinada palavra “não existe” só porque “não está no dicionário”. “Santa ingenuidade”, diria Robin!

No entanto, apesar desse lugar de honra concedido a esses especialistas, tem gente que se mete a querer corrigir os outros com atitudes mais rígidas e inflexíveis que a dos gramáticos e dicionaristas de formação “clássica”.

É gente que se desespera diante do fenômeno mais natural e inevitável do mundo: a mudança da língua.

Gente que tenta construir diques e barragens contra o inevitável fluxo da língua, contra as mudanças que nós mesmos, falantes da língua, vamos realizando imperceptivelmente e inconscientemente por causa do próprio uso que fazemos dela.

A língua não é de mármore, é de argila: pode ser (e é) moldada e remoldada o tempo todo por qualquer falante.

O filósofo Heráclito, quinhentos anos antes de Cristo, já dizia: panta rhei, “tudo flui”, tudo muda no universo, a mudança é inerente a todas as coisas, e a língua não tem como escapar dessa grande lei universal.

Uma das tentativas desesperadas dos mais realistas que o rei é querer preservar uma diferença de sentido no uso dos demonstrativos “este” e “esse”.

Gritam aos sete ventos, clamam nos desertos, bradam sobre os abismos, batem o pé, ateiam fogo às vestes, mas de nada adianta.

Tudo o que conseguem é infernizar a vida da gente: haja paciência para aguentar revisoras e revisores que tentam corrigir os usos de “este” e “esse” nos textos dos outros. Em vão.

Quando uma mudança já se enraizou no uso cotidianodos falantes e, principalmente, quando ela ocorre feliz e contente na escrita mais monitorada, é porque as formas antigas morreram, se extinguiram, e não têm como voltar atrás. Caixão e vela.

Onde será que os defensores da antiga distinção entre “este” e “esse” vão buscar argumentos para fundamentar suas cobranças descabidas?

A resposta é: no seu próprio desespero, no seu fundamentalismo trágico, na sua crença obscura numa língua mais certa do que a língua das gramáticas e dos dicionários. Senão, vejamos.

Quando a gente abre a “Gramática normativa da língua portuguesa”, de Rocha Lima, publicada em 1957 (há mais de sessenta anos, portanto!), topa com a seguinte observação: “não há muito rigor na distinção de isto e isso”.

Poucos anos depois, Evanildo Bechara, em sua “Moderna gramática portuguesa” (1961), escreveu: “Nem sempre se usam com este rigor gramatical os pronomes demonstrativos; muitas vezes interferem situações especiais que escapam à disciplina da gramática”.

E na edição mais recente da obra, de 1999, ele ainda acrescenta: “Estas expressões não se separam por linhas rigorosas de demarcação; por isso exemplos há de bons escritores que contrariam os princípios aqui examinados e não faltam mesmo certas orientações momentâneas do escritor que fogem às perscrutações do gramático”.

Na “Nova gramática do português contemporâneo”, de Celso Cunha e Lindley Cintra (1985), a gente lê: “Estas distinções que nos oferece o sistema ternário dos demonstrativos em português não são, porém, rigorosamente obedecidas na prática”.

E chegamos por fim ao “Dicionário Houaiss”, lançado em 2001, em que encontramos uma síntese de todas essas considerações anteriores: “no português do Brasil, a oposição entre ‘este’ e ‘esse desvaneceu-se, especialmente na língua falada, e só na língua formal escrita é observada, devido mais ao ensino escolar do que ao sentimento linguístico individual, por isso é frequente, mesmo na língua escrita, a troca de um pelo outro”.

Uma coisa que nunca devemos esquecer é que os gramáticos e dicionaristas de formação tradicional demoram muito, mas muito, mas muito tempo mesmo para admitir que uma mudança linguística já ocorreu e se fixou na língua que eles chamam de “culta” e que é, na verdade, a escrita literária.

(Vejam quantos rodeios Bechara faz para confessar a si mesmo que a coisa mudou!)

Assim, se em 1957 Rocha Lima já relativizava o emprego dos demonstrativos, é porque a mudança já tinha ocorrido muito tempo antes.

E então, gente boa? Por que vocês insistem em cobrar de nós distinções precisas e rígidas que até mesmo os gramáticos e dicionaristas mais respeitados dizem que não existem mais?

Não adianta chorar sobre leite derramado: a distinção entre “este” e “esse” não existe mais no português brasileiro.

Para distinguir o que está perto de mim e o que está perto de você, nós passamos a empregar os advérbios “aqui” e “aí”: “Esse copo aqui” / “Esse copo aí”. Fazemos exatamente como fazem os falantes de muitas outras línguas.

Vejam o francês: tem só um “ce” (feminino “cette”) que serve pra tudo!

Uma coisa muito importante que aparece na explicação do “Dicionário Houaiss” é o que ali se chama de “sentimento linguístico individual”.

Na linguagem técnica da linguística, diríamos “competência linguística” ou “intuição linguística”.

Quando os falantes deixam de fazer certas distinções é porque essas distinções não são mais exigidas por sua intuição linguística: os falantes não “sentem” mais necessidade daquilo.

Quando os falantes de uma língua não “sentem” mais necessidade de uma forma linguística, eles simplesmente descartam, jogam ela na lata de lixo da história da língua.

Assim aconteceu, por exemplo, com os demonstrativos acó, aló, aqueste, aquesta, aquesto, os possessivos femininos ma, ta, sa, os advérbios chus, u, i, porende, suso, toste, asinha, samicas, tamalavez, que existiam no português antigo e que foram sendo abandonados ao longo do tempo.

Nenhum falante de português brasileiro contemporâneo “sente” uma diferença entre “este” e “esse”.

E quem manda na língua é o falante e seu “sentimento linguístico”. Não existem barreiras capazes de impedir que a língua mude quando esse “sentimento” mudou.

Algumas pessoas podem jurar que sentem, que fazem essa diferença, mas basta gravar meia hora da fala delas para ver que é mentira: elas acham que falam, acham que fazem a diferença, mas entre o que a gente acha que faz e o que a gente faz de verdade (ao menos em termos de usos da língua) existe um abismo largo e fundo.

Não tem nenhum cabimento, portanto, cobrar essa distinção nos dias de hoje. Mais descabido ainda é o que fazem autoras e autores de livros didáticos que gastam papel e tinta explicando uma diferença que não existe e oferecendo exercícios para o uso “correto” dos demonstrativos.

Vamos parar de desperdiçar o escasso tempo de sala de aula com bobagens desse tipo? Vamos cuidar do que realmente interessa, que é acabar com o analfabetismo funcional que atinge 75 por cento da nossa população?

O mais triste dessa história toda é ver que muita gente, na hora de escrever, usa só e exclusivamente “este” (e suas flexões no feminino e no plural), um caso típico de hipercorreção: quando vai escrever, a pessoa acha que deve evitar na escrita as formas mais usuais da fala e se põe a só empregar as formas menos habituais, como se elas fossem algum tipo de erro. Ó dó!

Usemos e abusemos de “isso”, “esse”, “essa”, “esses” e “essas”. Esses são os verdadeiros demonstrativos do português brasileiro.

Claro que quem quiser pode usar à vontade as formas “clássicas”, mas nada de vir me dizer que elas são mais “corretas” do que as outras. Não são. Está provado cientificamente.
Insistir em usos que se acham em fase terminal de obsolescência é uma tarefa trágica, com inevitável final infeliz.

Já tem tanta coisa no mundo para nos deixar tristes, não precisamos de mais essa!

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(*) Marcos Bagno é professor do Instituto de Letras da UnB. Escritor, poeta e tradutor, já publicou mais de 30 livros, entre obras técnico-didáticas e literatura. Autor de Gramática Pedagógica do Português Brasileiro - Parábola Editorial, 2012 - www.parabolaeditorial.com.br

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